Há vários séculos que vemos artistas a copiar o trabalho de outros como forma de aprenderem a desenhar ou dominarem o estilo que querem trabalhar. Mas e se no século XXI esta técnica de recriar a obra de outros acontecesse por um motivo completamente diferente? E se as fotografias imitassem a pintura, tornando o que até então era imaginário em algo real? E se essas fotografias incluíssem um significado escondido? Para saberem mais sobre isto, vão ter que mergulhar nas pinturas doces de Wayne Thiebaud e na sua recriação fotográfica por Sharon Core.

Wayne Thiebaud, Confettis, óleo s/tela, 1962, San Francisco Museum of Modern Art.
Wayne Thiebaud (1920) é um pintor americano conhecido sobretudo pelas suas pinturas de doces que nos deixam água na boca. Há bolos, gelados e máquinas cheias de pastilhas elásticas. Os tons pastel são também uma forte característica dos seus trabalhos, com fundos em tons frios que contrastam, por exemplo, com o vermelho, rosa e laranja do objecto principal.
Para além disso, Thiebaud pinta outras coisas como batons, ursos de peluche e até as ruas de São Francisco. Como pinta objectos banais, é algumas vezes associado incorrectamente à Pop Art, sendo que a grande diferença é que Thiebaud trabalha a partir da vida diária e não de imagens dos media. Outra diferença reside nas suas pinceladas notavelmente soltas, ao contrário do que acontece com a reprodução mecânica de artistas Pop como Andy Warhol e James Rosenquist.
A maior parte destes trabalhos mostram mais do que um doce em cada pintura e podemos facilmente reconhecer os traços artísticos de Thiebaud: ele escolhe eliminar alguns detalhes que não lhe interessam para dar mais realce ao que quer e, ao mesmo tempo, inclui elementos da sua experiência pessoal e algumas nuances perceptuais.

Wayne Thiebaud, Dessert Tray, óleo s/tela, 1992-1994, San Francisco Museum of Modern Art.

Wayne Thiebaud, Valley Streets, óleo s/tela, 2003, San Francisco Museum of Modern Art.
Foi quando se mudou para a Califórnia que Thiebaud se interessou por design e iluminação de palco e podemos ver como isso veio a ter um grande impacto no seu trabalho: a luz é forte e realça os elementos com sombras sempre fiéis e, em grande parte das obras, os bolos ou os gelados parecem colocados numa espécie de palco, organizados por ordem de importância.
Podemos todos concordar que estes trabalhos nos fazem desejar um docinho, certo? E se vos disser que alguns destes gelados, tartes e bolos foram confeccionados há poucos anos?
Confusos?
Para explicar tenho que vos apresentar a Sharon Core (1965) uma fotógrafa americana, galardoada pela Yale University School of Art com o George Sakier Memorial Prize por excelência em Fotografia, em 1998.

Sharon Core, 1614 (da série “1606-1907”), impressão de pigmento, 2017, Tracey Morgan Gallery. Fonte: traceymorgangallery.com
Core trabalha por séries e o que todas elas têm em comum é que apresentam recriações de pinturas, muitas delas de natureza-morta. E o que é ainda mais interessante é que é ela que reúne os elementos necessários para conseguir alcançar essa mesma recriação.
Por exemplo, criou uma série dedicada a Raphaelle Peale, um pintor americano cujo trabalho era centrado nas naturezas-mortas repletas de flores, frutos e alguns animais. Quando Core recriou as obras de Peale, ela própria plantou as flores e os frutos para depois os encenar de modo a parecem iguais ao que estavam nas pinturas.

Raphaelle Peale, Blackberries, 18.4 x 26 cm, óleo s/madeira, ca. 1813. Fonte: blvrd.com

Sharon Core, Early American – Blackberries, impressão C analógica, 2008. Fonte: time.com
Como já devem ter adivinhado, existe uma série dedicada a Wayne Thiebaud.
Neste caso ela não precisou de plantar flores, mas sim de fazer todos os bolos, tartes, gelados e tudo mais a partir do zero. Core tem treino tanto em pintura como em pastelaria, por isso só teve que aliar essas duas áreas para conseguir as fotografias finais.
A maior parte das suas recriações nascem por ver fotografias das obras de Thiebaud e não por ver as obras ao vivo. É também interessante que, de certa forma, ela quase que volta à primeira ideia que Thiebaud terá tido quando idealizou o que queria pintar, porque quando pensámos em algo, esse pensamento começa por ser uma espécie de fotografia na nossa mente para depois se transformar em algo real.

Wayne Thibeaud, Cakes, óleo s/tela, 1963. Fonte: foodoncanvas.eu

Sharon Core, Thiebauds – Cakes, impressão C analógica, 2003. Fonte: hyperallergic.com
O mais interessante do trabalho fotográfico de Sharon Core está relacionado com aquilo a que Walter Benjamin chamou de “aura”. A aura tem a ver com a forma como uma obra de arte é criada. Se foi feita à mão, como uma pintura ou uma escultura, ela tem aura, porque inclui o toque da mão do artista e porque lhe tomou tempo, por exemplo, a aplicação de tinta na tela. Mas se uma obra é feita a partir de reprodução mecânica, como acontece com a fotografia, a aura já não faz parte da mesma.
Porém, a fotografia de Sharon Core tem um tipo diferente de aura, porque não lhe toma apenas uns segundos para clicar no botão da câmara. Ao invés disso, ela tem que esperar horas para que os bolos e tartes se pareçam exactamente com as pinturas de Thiebaud; e no caso das pinturas de Peale ela tem meses de espera pela frente até poder dar uso aos frutos e às flores. Assim sendo, o tempo e trabalho que Core investe nas suas fotografias pode até exceder o tempo que Thiebaud levou a pintar.

Wayne Thiebaud, Salads, Sandwishes, and Desserts, óleo s/tela, 1962, Walker Art Center. Fonte: artsy.net

Sharon Core, Thiebauds – Salads, Sandwiches, and Desserts, impressão C analógica, 2003. Fonte: hyperallergic.com
Podemos concordar que, muito provavelmente, o pintor não terá confeccionado o que representava. Mas, como já disse, Sharon Core fez todos os doces que aparecem nas suas fotografias. Desde o Renascimento, as naturezas-mortas passaram a ser um tema trabalhado quase exclusivamente por homens, mas isto não significa que este tema seja categorizado por eles, pois quase tudo o que vemos representado neste tipo de obras está associado ao que é chamado o universo feminino, como flores, utensílios de cozinha, comida, etc. Aliando isto ao facto de Sharon Core confeccionar o que fotografa, podemos assumir que aproveita esta série para fazer uma pequena crítica aos privilégios que os artistas homens têm em relação às mulheres e que os homens têm em relação às mulheres no geral.

Wayne Thiebaud, Bakery Counter, óleo s/tela, 1962, Ebsworth Living Trust.

Sharon Core, Thiebauds- Bakery Counter, impressão analógica C, 2008. Fonte: hyperallergic.com
Para terminar, podemos dizer que as fotografias de Sharon Core alteram o status do objecto representado. Com a pintura nunca sabemos (a não ser que haja relatos do contrário) se o que ela mostra é real ou apenas algo da imaginação do pintor. No caso da fotografia sabemos que o que nos é mostrado é real (não considerando as alterações digitais). As fotografias de Sharon Core literalizam as pinturas de Wayne Thiebaud, trazendo-as para o nosso mundo real, embora haja uma conversa constante entre imaginação e realidade.
Originalmente publicado em https://www.dailyartmagazine.com/wayne-thiebaud-sweet-paintings/
tão mas tão interessante, não conhecia nenhum dos artistas e este artigo em si trouxe tantas coisas novas !
GostarLiked by 1 person
Vou continuar a trazer este tipo de artigo. Obrigada. 🙂
GostarGostar