Artista da 2ª geração do Modernismo Português, Sarah Affonso tem uma obra que pode ser dividida em várias fases, cada uma delas com as suas características específicas e marcadas por influências e memórias diferentes. Mesmo com a sua separação da Pintura, a Arte nunca a vai deixar, incluindo-a em tudo o que faz.
Após um artigo referente à sua vida mais pessoal, neste o foco vai todo para a sua actividade artística.

Mãe e Filha, óleo sobre tela, 1939, Museu Nacional de Soares dos Reis.
Tendo sido a última aluna de Columbano Bordalo Pinheiro (1857-1929), não seguiu o estilo Naturalista do mestre, tendo-o abandonado aos poucos, até que em 1924 é já visível uma alteração na palete cromática e a simplificação das formas, algo que nos mostra Mãe e Filha. Caminhou a passos largos para a modernidade de forma intencional, muito pela admiração que nutria pelas obras de Matisse e Cézanne. Dá grande importância à linha de contorno, ao desenho e à simplificação das formas, criando um ávido diálogo entre linhas e formas.
Do seu mestre, porém, retira a grande produção de retratos. Começa por retratar essencialmente membros da família e pessoas conhecidas, mas à medida que vai modificando os seus temas, também os retratos se vão adaptando.
A sua primeira fase reside nisso mesmo: nos retratos. Mulheres e meninas que nos são mostradas exactamente dessa forma. Às vezes distraídas, outras em actividades como a leitura, mas não há espaço para as pensarmos no lugar que elas têm/terão na sociedade e na família. Ali são apenas elas.
A mulher é, desde logo, um tema dominante nas suas obras.

Retrato de Matilde, óleo sobre tela, 1932, Fundação Calouste Gulbenkian. Fonte: https://gulbenkian.pt
O fim da segunda estadia em Paris marca o início da segunda fase da sua pintura, sendo que vai abandonando este tipo de retrato para se dedicar à representação do Alto Minho. Começa com os retratos de mulheres anónimas com lenços na cabeça e a partir daqui produz obras com cenas rurais. Vemos uma regresso às origens, mas também a representação dos valores aprendidos em França, tanto na consciência social perante as adversidade na vida das mulheres como na influência que o Neoprimitivismo (estilo marcante na capital francesa na década de 1920) tem nestas obras, como é exemplo Menina com Boi.

Menina com Boi, 1933, óleo sobre tela, colecção particular. Fonte: https://www.modaemoda.pt/

Sem Título, óleo sobre tela, 1939, colecção privada. Fonte: https://www.pontedelimacultural.pt/
A terceira fase da sua obra pictórica tem início após uma viagem a Viana do Castelo com o pai, em 1933. A partir daqui, as suas telas vão mostrar o folclore minhoto e girar em torno de uma inspiração num imaginário popular que remonta à sua infância, pintando temas como as festas populares e os casamentos, com uma grande sensibilidade a nível da cor, sendo o maior exemplo desta fase a obra Estampa Popular (mais conhecida como Casamento na Aldeia). Como diz José Régio:
Sarah Affonso transporta (…) para a tela uma visão paradisíaca da vida: toda a sua pintura diz saudades da infância, ou antes: persistência dum estado infantil numa consciência já suficientemente crescida para aproveitar artisticamente essa infantilidade.
Sarah Affonso vai lutar contra a representação do povo minhoto de forma estereotipada, interpretando-o de forma única e pessoal. Os tons verdes intensos fundem-se com as mulheres que continuam a surgir como elemento mais forte, as famílias e com o contexto rural representado tanto nas lides domésticas como no trabalho do campo. Aqui, podemos destacar obras como A Estrela, Lavradeiras com Bois e Família, todas de 1937.

Estampa Popular ou Casamento na Aldeia, óleo sobre tela, 1937, Fundação Calouste Gulbenkian. Fonte: https://gulbenkian.pt

Família, óleo sobre tela, 1937, Fundação Calouste Gulbenkian. Fonte: https://gulbenkian.pt/

Ex-voto (Sereia), óleo sobre tela, 1939, colecção privada. Fonte: FacebookFundaçãoCalousteGulbenkian.
Apesar destes anos de grande produção, em 1939 que decide abandonar o mundo da pintura, não só devido a motivos pessoais (complicado conciliar o papel de mãe e esposa com o papel de artista), mas também por falta de condições de trabalho (nunca recebeu uma encomenda e tinha grande dificuldade em vender os seus quadros) e a insegurança que sentia a nível profissional. A própria o conta numa conversa com a nora em 1984:
(…) esta terra não aprecia ninguém e não dá trabalho e essa foi a grande razão de eu não mais pintar porque eu para pintar preciso que me entusiasmem, porque eu não tenho grande confiança no que faço. Nunca tive uma encomenda!
Ainda assim, nunca deixou de estar envolvida no mundo da Arte nem de produzir. Para além de continuar a apoiar Almada Negreiros quando necessário, dedica-se quase exclusivamente ao Artesanato, produzindo bordados, cerâmicas e azulejos.
Na Quinta em Bicesse, muitos dos elementos decorativos, como almofadas, cortinas, toalhas de mesa e painéis de azulejos, são da sua autoria. Investiu aqui a sua criatividade.

Interior da casa da Quinta de Bicesse, Espólio Almada Negreiros. Fonte: https://www.publico.pt/
É neste contexto que, em meados dos anos 1940, produz botões de cerâmica com a venda dos quais vai conseguir sustentar a casa e a família durante pelo menos um mês, numa altura em que o marido se vê privado de encomendas estaduais que eram a sua principal fonte de rendimento.
Estas actividades, que sempre providenciaram a Sarah uma forma de sustento, acabaram por se tornar o símbolo da mulher portuguesa no Estado Novo, quando, em 1936, foi criado o OMEN (Obra das Mães pela Educação Nacional), um grupo que tinha como objectivo preparar as próximas gerações de mulheres para o papel que deveriam desempenhar como mães, esposas e donas de casa. Havia, portanto, o incentivo do bem cuidar do lar e do uso das tradições portuguesas com estímulo para as actividades caseiras e, lá está, artesanais.
Para além do Artesanato, Sarah desenvolveu muito trabalho na área da ilustração, incluindo a de livros infantis, como é o caso do livro A Menina do Mar de Sophia de Mello Breyner Andresen.

Botão em forma de coração, décadas de 40 e 50, cerâmica vidrada policromada e barro cozido, colecção privada. Fonte: https://www.facebook.com/fundacaocaloustegulbenkian

Sophia de Mello Breyner Andresen, A Menina do Mar, ilustrações de Sarah Affonso, 1ª edição, 1958.
Fonte: https://repositorioaberto.uab.pt/bitstream/10400.2/8348/1/MJ_O%20Mar%20na%20identidade%20cultural%20portuguesa.pdf
Com a sua arte, a qual é comummente referida como sendo muito feminina, cria uma distinção com a arte realista dos homens da época. É uma obra ternurenta e com ligação ao lado infantil/vivências infantis, cores luminosas e definidas. Fantasia e suavidade, como os atributos da maternidade. Promove a cultura popular em contraste com a erudita promovida pelos restantes artistas. Eleva o desenho, a ilustração, o bordado e a cerâmica (ditas artes menores) ao mesmo nível da Pintura.
Esta definição de “obra feminina” mostra, porém, como era primeiro vista como mulher e só depois como artista, vendo poucas vezes os seus trabalhos avaliados de forma técnica e sem serem inseridos nos contextos social e político.
Não importa pensar no que Sarah Affonso podia ter sido se não fosse a mulher de Almada Negreiros. Importa, sim, pensar e compreender o que realmente foi. Mesmo tendo a vida pessoal e familiar como inspiração, é também necessário pensar a sua obra sem a sujeitar a comparações não essenciais.
Imagem de topo: A Estrela, 1937, colecção privada.
Não conhecia a artista e fiquei pasmada quando comecei a reconhecer as obras e depois pumbas A Menina do Mar! fiquei fascinada, estes dois artigos foram incríveis!
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Sim, tem o nome um pouco na penumbra, mas as obras são facilmente reconhecíveis. 🙂
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