Dia Internacional da Mulher em 8 Obras Feministas Portuguesas

O Dia Internacional da Mulher foi celebrado pela primeira vez em 1975, sendo o dia de 8 de Março proclamado como a data oficial para tal em 1977 pelas Nações Unidas. Após 44 anos a assinalar este dia, ainda há quem o considere como uma simples desculpa para oferecer chocolates e flores às mulheres. Mas não é nada disso que este dia representa.
Deste modo, e para celebrar a data trazendo à baila as questões que importam, seleccionei 8 obras de mulheres artistas portuguesas que trabalham exactamente os temas que o dia comporta.

A temática feminista na Arte portuguesa é difícil de encontrar. Com a Revolução de Abril de 1974, dá-se espaço para várias alterações a nível governamental, social e de liberdade, fazendo com que a teoria feminista, que já vinha sendo explorada, não tivesse lugar para se pronunciar como aconteceu na mesma altura, por exemplo, nos Estados Unidos da América e no Reino Unido.
Mesmo após a revolução, ainda demorou (e demora) para que a mulher encontrasse na sociedade um lugar mais cómodo e não tão restritivo. Isso fez com que muitas artistas não se quisessem associar ao feminismo, porque, tal como nos diz Filipa Lowndes Vicente:

Subsiste também o temor, para algumas mulheres, de serem rotuladas “feministas”, com todo o peso negativo que o senso comum atribui à palavra e que o mundo académico parece emular.

Ainda assim, é possível encontrar alguma linguagem feminista nas obras das artistas portuguesas. Algumas assumem que a sua obra está directamente ligada às questões feministas e outras dão-nos espaço para essa interpretação, mas a verdade é que a maior parte delas não estabelece essa relação de forma tão directa, considerando até esse enquadramento irrelevante ou circunstancial na sua obra.
Embora não se possa identificar um movimento feminista nas Artes Plásticas em Portugal, é possível, aos olhos dos estudos artísticos actuais, verificar que existiu uma representação do feminismo, especialmente no contexto da neo-vanguarda.

Para este artigo, e como já referido, foram seleccionadas 8 obras de índole feminista, as quais vão aparecer organizadas de forma cronológica.
Comecemos, então.

1. Aurélia de Souza, Autorretrato (com laço), 1897

Fonte: https://etcetaljornal.pt/

Aurélia de Souza (1866-1922) pertence a uma sociedade profundamente marcada pela desigualdade de género que inclusive a faz ter que passar várias barreiras para poder exercer a profissão de pintora. Tais barreiras poderão ter impedido o seu completo desenvolvimento enquanto artista e ainda mais o seu reconhecimento legítimo como tal na altura.

Nesta obra, Aurélia de Souza retrata-se com uma expressão quase patética que nos olha de sobrolho franzido, boca entreaberta da qual vemos a língua a querer sair e uma tez pálida que quase se confunde com o fundo da tela. Mas o grande laço preto é o centro das atenções, estrangulando o pescoço da artista, vítima deste adereço que a deixa prestes a falecer. A pintora dá a esta obra uma grande importância, pondo-a em destaque em algumas exposições e fazendo-se acompanhar dela no seu retrato fotográfico. Mas o significado que lhe dá não terá sido entendido pelos homens da época que não vêem nada para além de um retrato banal. Pelo contrário, com certeza que as mulheres se reviram neste que é um retrato de uma sociedade patriarcal e misógina que as oprime, com uma clara referência às vestes femininas da época que incluíam os incomodativos espartilhos e caudas de vestidos. Esta moda punha em 1º plano o “papel decorativo” da mulher, sacrificando a sua saúde e movimentos, representando uma cultura onde as mulheres não tinham direitos nem voz.

2. Clara Menéres, série Bordados, 1972

Fonte: https://www.facebook.com/fundacaocaloustegulbenkian

Com esta série, da qual vemos aqui apenas um exemplo, Clara Menéres (1943-2018) reafirma o seu discurso intencionalmente orientado para as questões de género. Apresenta uma crítica às construções sociais que definem papéis específicos para cada género, colocando a mulher num lugar de dedicação à família sob um poder patriarcal. São imagens deliberadamente provocatórias que representam uma oposição aos comportamentos permitidos às mulheres. A artista é igualmente radical quanto ao meio que escolhe para se expressar, sendo que uma obra em bordado não correspondia aos cânones artísticos, muito menos no Portugal antes do 25 de Abril de 1974. Esta técnica associada ao universo feminino era ensinada desde cedo às meninas e vê-se aqui povoada de corpos nus em vez das tradicionais flores. Clara Menéres utiliza assim uma expressão feminina para se impor às pedagogias e envolvências morais da época.

3. Maria José Aguiar, Pintura (série Marcas), 1976

Fonte: https://repositorio-aberto.up.pt/handle/10216/69844

Esta série de Maria José Aguiar (n. 1948) causou uma grande polémica à época, pois enfrentou as convenções culturais portuguesas ainda de grande base patriarcal. As obras representam uma elevação do pénis, aqui aniquilado, à categoria de ícone que é usado como elemento decorativo. Perde, deste modo, o impacto sexual normalmente a ele associado, pois serve apenas para uso na linguagem plástica. Aqui o falo surge como um elemento que é utilizado meramente para criar padrões, fazendo com que a autoridade patriarcal que impõe seja substituída por uma organização repetitiva, seja em linha recta ou espiral. Estas repetições fazem com que o homem seja excluído tanto da esfera privada como da pública, perdendo a sua identidade. Cada pénis é apenas mais um no meio de muitos; uns a seguir aos outros. Não há individualidade nem heroicidade, sendo este o motivo de maior choque para o público da altura, principalmente o público masculino.

4. Ana Vieira, Santa Paz Doméstica, Domesticada?, 1977

Fonte: https://www.anavieira.com/

Ana Vieira (1940-2016) admite uma leitura feminista potenciada na sua obra, embora não encontre uma formulação prévia da ideologia na concretização da mesma.

Santa Paz Doméstica, Domesticada? é apresentada pela primeira vez na exposição Artistas Portuguesas, exposição essa organizada por mulheres e só com obras de mulheres. É um protesto às funções normalmente atribuídas às mulheres, bem como à passividade que as mesmas demonstravam perante a vida que lhes era destinada logo de antemão pelo facto de serem, lá está, mulheres. É mais uma obra, dentro da amostra deste artigo, que foge da pintura e da escultura, assumindo-se como uma instalação de um espaço doméstico, nomeadamente a sala de estar. Remete-nos para um espaço feminino, pois é caracterizado por objectos como chinelos, as agulhas de tricot, maquilhagem e espelho, revistas dedicadas ao lar e produtos de limpeza, tudo elementos normalmente associados ao universo das mulheres. A artista apresenta-nos uma feminilidade simbólica e cultural, mas também táctil e sensorial, sendo que faz acompanhar a obra de um argumento:

Uma mulher está de costas para nós junto a uma varanda e é vista através de uma cortina de renda. Acena com a mão. Em seguida entra em casa, olha com atenção para tudo. Anima-se para começar o trabalho caseiro. Já tem um avental posto, acrescenta um lenço na cabeça e agarra vários utensílios e objectos para iniciar a limpeza. Detergente, ajax, espanador, pano de pó, vassoura, etc. Limpa o pó a vários bibelots, mira-os, acaricia-os. A seguir vai limpar os vidros das janelas, depois o chão; esfrega com uma escova, usa sabão, detergente, envolve-se neles, acaricia-os com eles, esfrega-se. Solta o cabelo, tira peças de roupa, transpira. Entretanto ouve o rádio que dá uma música ligeira e anúncios para donas de casa. A certa altura a rádio pára para dar uma notícia sensacional: “um cientista descobriu um robot capaz de fazer o trabalho de casa”. A mulher fica petrificada. Quando o marido regressa a casa, ela está sentada, com as mãos cruzadas, com um olhar ausente e nem o vê.

5. Emília Nadal, Skop, 1979

Fonte: https://makingarthappen.com/

Emília Nadal (n. 1938), uma das responsáveis pela exposição Artistas Portuguesas mencionada acima, segue uma linguagem Pop para criar uma problematização da ideologia da cultura de massas. O uso de produtos de consumo como latas de alimentos de comida pronta a consumir e, neste caso, o detergente para a roupa tem o intuito de desconstruir o papel social inerente a quem habitualmente vê os anúncios para tais produtos: as mulheres. Com esta obra, as mulheres são remetidas para o espaço simbólico do lar e da família, espaço esse que aqui ganha uma conotação pública. A embalagem de Skop é ainda acompanhada de um slogan doutrinário: “detergente ideológico para todos os programas de lavagem de cérebro”. Ao contrário de Andy Warhol cujo trabalho consistiu em grande parte na elaboração de uma estratégia de imagem, Nadal opta por um confronto permanente entre as linguagens da cultura popular, ideologia, conflito e papéis sociais, principalmente no que diz respeito ao papel que é construído para a mulher relativamente a estes discursos domésticos. Pensa, assim, uma reconfiguração dos espaços habitados pelos corpos das mulheres.

6. Júlia Ventura, Cinq Études Pour L’Élimination de L’Altérité (série), 1985

Fonte: https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/33408/1/ulfl243191_tm.pdf

A obra de Júlia Ventura (n. 1952) elabora importantes questões no que toca à representação fotográfica e à autorrepresentação. Utilizando a fotografia nas suas potencialidades de reprodutibilidade e representação, explorando estereótipos que rodeiam a imagem feminia, principalmente no contexto artístico e fotográfico.

A obra em questão mostra-nos uma procura de identidade que num primeiro plano se revela de feminilidade com a associação à nudez, à delicadeza dos gestos e ao uso da rosa, mas que, ao mesmo tempo, nos faz questionar uma existência de masculinidade devido ao cabelo de corte curto (fugindo aqui ao padrão de beleza definido para as mulheres) e à força que a mão exibe em algumas das fotografias, assemelhando-se a um murro. Deste modo, a artista quer questionar se são esses elementos que definem o que é ser mulher e o que é ser homem. A sugestão de nudez pode indicar uma posição de vulnerabilidade e de igual modo significar, quando conciliada com a imagem do desflorar de uma flor, o êxtase que só deve acontecer após o casamento, também representado em algumas das expressões faciais que podemos ver. O modo como era previsto as mulheres comportarem-se faz com que a artista nos mostre uma sexualidade recalcada (com a não revelação de uma nudez total e do que acontece depois do plano fotográfico) ao mesmo tempo que nos dá elementos que enfatizam essa mesma sexualidade (com as expressões e o uso da rosa que pode ser desflorada).

7. Paula Rego, Sem Título (série do aborto), 1998

Fonte: https://www.publico.pt/

Nesta série a que escolheu não dar título por considerar este um acto inenarrável, Paula Rego (n. 1935) mostra-nos o aborto clandestino com ligação à possibilidade de morte ou doença que as mulheres enfrentavam ao fazê-lo por viverem num país de regime social masculino que não lhes dava a opção de o fazer de forma segura, ignorando as condições distintas de existência que as mulheres têm em relação aos homens. Esta série de 1998 remonta à altura em que se dá o 1º Referendo sobre a Interrupção Voluntária da Gravidez em Portugal, tema sobre o qual Paula Rego sempre foi bastante vocal, exprimindo muita revolta. Nestas obras vemos mulheres deitadas, ajoelhadas, de costas, absortas ou activas, envoltas em dor e solidão, assumindo o secretismo por estarem a cometer um crime. Lembram-nos como o acto de impulso vital que é o sexo pode resultar no drama que é o aborto. A artista dá voz à luta contra esta clandestinidade a que as mulheres tiveram que se sujeitar, à falta de outra opção, em Portugal até 2007. Estas imagens chegam mesmo a ser utilizadas para campanhas de protesto social, contrastando com as escolhidas pela oposição que não consigam ir mais longe graficamente para além das imagens de fetos.

8. Clara Não, Recatada O Caralho, 2019

Fonte: https://www.etsy.com/shop/claranao

Era impossível escrever um artigo sobre obras feministas e não incluir uma da Clara Não (n. 1993). Na verdade, grande parte das suas obras podiam figurar aqui, mas esta é absolutamente essencial para a o significado do Dia Internacional da Mulher. Aqui somos remetidos para uma recusa do papel que sempre foi atribuído à mulher: comportar-se com modos e tratar do lar, sendo esse o seu espaço essencial. Clara Não diz-nos que não há nada errado em querer ser “recatada e do lar”, sendo ‘querer’ a palavra chave. Tem de ser uma escolha da mulher e não algo imposto pela sociedade, pela família, pelos amigos. Chega de dizer às mulheres se elas podem ou não ter uma carreira de sucesso; se são piores mulheres por não quererem assumir o papel de esposa e/ou mãe. Porque é exactamente isso que as mulheres querem: a liberdade para serem quem e como quiserem. Não querem ser obrigadas a seguir os preconceitos sociais estabelecidos há décadas. Querem o direito de poder escolher, tal como os homens têm. As mulheres querem igualdade.

Com formas de expressar e técnicas diferentes, o que estas 8 obras têm em comum é a crítica que fazem à sociedade patriarcal na qual se inserem. Uma sociedade que dita que as mulheres pertencem ao lar, à família, que ainda vê de soslaio uma mulher com uma carreira de sucesso seja em que área for, uma sociedade que dita o que as mulheres podem ou não fazer com o seu corpo. Obras que, de forma mais ou menos evidente, dão voz a quem durante muito tempo não a teve e, em alguns casos, continua a não ter.

2 pensamentos sobre “Dia Internacional da Mulher em 8 Obras Feministas Portuguesas

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