O mundo da Arte não se faz só de artistas e obras. Sejam os patronos, os comissários, os museus, as galerias e até os coleccionadores, todos eles são uma ajuda para dar palco aos artistas, sejam eles emergentes ou já estabelecidos no meio.
Peggy Guggenheim pertence ao grupo dos coleccionadores. Uma mulher que não teve medo de arriscar na Arte Moderna, numa altura em que todos a consideravam de soslaio. E não só seguiu o seu instinto e conselhos de amigos, como mais tarde viria a reunir a sua colecção naquele que é agora considerado um dos museus mais conceituados e aclamados do mundo artístico moderno.
Por todos esses motivos e por nunca ter desistido daquilo em que acreditava, é sobre ela o artigo de hoje.
Eu dediquei-me à minha colecção. Uma colecção significa trabalho árduo. Era o que eu queria fazer e tornei-o o trabalho da minha vida. Eu não sou uma coleccionadora de Arte. Eu sou um museu.

Peggy Guggenheim com uma obra de Pegenn Vail, sua filha. Fonte: Glamurama.
Marguerite “Peggy” Guggenheim nasceu, em Nova Iorque, a 26 de Agosto de 1898, no seio de uma família abastada. Filha de Florette Seligman (1870-1937), pertencente a uma família banqueira de topo, e de Benjamin Guggenheim (1865-1912) que, juntamente com o pai e os seis irmãos, criou fortuna através do trabalho com metais. O seu pai foi uma das vítimas do naufrágio do Titanic, em Abril de 1912.
Outro familiar que é necessário destacar é o tio Solomon R. Guggenheim (1861-1949), fundador do Museu com o mesmo nome em Nova Iorque.
Foi exactamente nessa cidade que Peggy Guggenheim passou a sua infância e juventude. É em 1921, já casada com Laurence Vail (1891-1968, casam em 1922 e separam-se em 1930; pai dos seus dois filhos) que viaja para a Europa, nomeadamente para Paris. Aqui, desloca-se entre a vida boémia e a sociedade americana expatriada, conhecendo algumas pessoas que se tornariam amigos de longa data, como é o caso de Constantin Brâncuși (1876-1957), Djuna Barnes (1892-1982) e Marcel Duchamp (1887-1968).

Peggy Guggenheim em Paris, c. 1940. Fonte: Peggy Guggenheim Collection.
É em 1938 que abre a Guggenheim Jeune, uma galeria de arte em Londres. Com 39 anos, dá assim início a uma carreira que vai ter um grande impacto na Arte no pós-guerra.
Amigos como Samuel Beckett (1906-1989) e Duchamp incentivaram Peggy a apostar na Arte Contemporânea, ensinando-lhe a diferença entre os vários estilos e apresentando-a a vários artistas. Nesta galeria, expôs obras de Jean Cocteau (1889-1963), Wassily Kandinsky (1866-1944), Yves Tanguy (1900-1955), Rita Kernn-Larsen (1904-1998), entre outros.
A primeira obra que Peggy Guggenheim comprou foi Head and Shell (c. 1933) do pintor e poeta alemão Jean Arp (1886-1966).
É também nestes anos que volta a instalar-se em Paris e aqui começa a ocupar-se a tempo inteiro da compra de obras de arte, adoptando o mote:
O meu mote era “Comprar uma obra todos os dias” e vivi de acordo com isso.
Apesar dos tempos conturbados, adquiriu grandes obras de artistas como Georges Braque (1883-1963), Salvador Dalí (1904-1989), Robert Delaunay (1885-1941), Piet Mondrian (1872-1944), Francis Picabia (1879-1953), Fernand Léger (1881-1955) e Brâncuși.
Como avançar da guerra, pediu ao Musée du Louvre para esconder a sua colecção, algo que lhe foi negado. Tendo nome judeu, viu-se obrigada a ocultá-lo nos serviços alfandegários para conseguir enviar as suas obras como “itens domiciliários” em segurança para Nova Iorque. Assim, não só conseguiu proteger a sua colecção como também os meios de subsistência dos seus artistas considerados “degenerados” pelo 3º Reich.
Só com o aproximar do exército nazi a Paris é que decide fugir para o sul de França e em Julho de 1941 regressa a Nova Iorque com os seus filhos, o seu agora ex-marido, a esposa e filhos dele, e com o pintor Max Ernst (1891-1976), com quem viria a casar pouco tempo depois, divorciando-se mais tarde, em 1946.

Jean Arp, Head and Shell, c. 1933, latão polido, Peggy Guggenheim Collection. Fonte: Guggenheim.

Peggy Guggenheim no documentário Art Addict, 2015. Fonte: Masdearte.
Em Outubro de 1942, inaugura Art of This Century, em Manhattan, uma galeria com colecção permanente, exposições temporárias e venda de obras, e que cedo se tornou o espaço mais estimulante da arte contemporânea em Nova Iorque, com uma grande inovação ao nível das salas de exposição, com todos os elementos do espaço a relacionarem-se com os estilos e peças aí expostos. Aqui queria mostrar que não tinha preferência entre a Abstracção e o Surrealismo, pedindo a colaboração de artistas de ambos os estilos para várias coisas, incluindo a concepção do catálogo.
Até aqui, a colecção de Peggy Guggenheim ia de 1910 a 1942, numa quantidade limitada, mas bastante forte a nível qualitativo: Cubismo, Futurismo, Orfismo, Abstracção Europeia (Suprematismo, Construtivismo, De Stijl), pintura Metafísica, Dadaísmo, Surrealismo, Purismo; com obras de vários artistas como Brâncuși, Jean Arp, Alberto Giacometti (1901-1966), Henry Moore (1898-1986), Alexander Archipenko (1887-1964), Henry Laurens (1885-1954), etc.
Nesta galeria, para além de expor a sua colecção, usava as exposições temporárias como palco para os grandes nomes da arte europeia, mas também para os artistas americanos emergentes como Robert Motherwell (1915-1991), Mark Rothko (1903-1970), Jackson Pollock (1912-1956), entre outros.
Pollock seria exactamente um dos artistas a quem Peggy Guggenheim daria um maior impulso, sendo o primeiro a expor a solo na galeria e cujas obras a coleccionadora promovia e vendia activamente. Foi também ela que comissionou o seu maior Mural (1943). Guggenheim viria a considerar o sucesso do artista americano como uma das suas maiores conquistas.

Peggy Guggenheim na Galeria Surrealista na Art of This Century, c. 1942, Nova Iorque. Fonte: ResearchGate.

Galeria Abstracta, Art of This Century, Nova Iorque, 1942. Fonte: Peggy Guggenheim Collection.

Peggy Guggenheim e Jackson Pollock em casa da coleccionadora, frente a Mural. Nova Iorque, c. 1946. Fonte: Artsy.
Mais importante que dar a conhecer a Arte Europeia, Peggy, juntamente com o amigo e assistente Howard Putzel (1898-1945), era uma grande incentivadora do crescente movimento Avant-Garde, em Nova Iorque. O desenvolvimento deste que foi o primeiro estilo artístico americano vai, por isso, buscar grande força à sua colecção.
Mal tem oportunidade de regressar à Europa, Peggy escolhe Veneza como destino, viajando rumo à cidade em 1947. Pouco depois da sua chegada, compra o Palazzo Venier dei Leoni, onde acabaria por passar o resto da sua vida. Esta foi a cidade da vida e do coração da coleccionadora, que tinha uma visão peculiar sobre a mesma. Entre várias afirmações, podemos destacar:
Assume-se que Veneza é o local ideal para uma lua-de-mel. Este é um erro muito grave. Viver em Veneza ou apenas visitá-la significa que se apaixonam pela própria cidade. Não sobra nada no vosso coração para mais ninguém.

Peggy Guggenheim no terraço do seu Palazzo, 1949. Fonte: Pinterest.

Peggy Guggenheim numa gôndola. Veneza, 1968. Fonte: Peggy Guggenheim Collection.
Logo em 1948, enquanto Itália atravessava uma Guerra Civil, expõe a sua colecção na Bienal de Veneza. É a primeira vez que obras de artistas como Pollock, Arshille Gorky (1904-1948) e Rothko são exibidas na Europa. Este ponto aliado à quantidade de obras cubistas, surrealistas e abstractas na colecção, fazem desta exposição uma das mostras modernistas mais coerentes apresentadas no país até então.
Pouco depois, em 1949, organiza uma exposição de escultura contemporânea e, em 1950, a primeira exibição europeia de obras de Pollock.
Em 1962, a cidade nomeia-a Cidadã Honorária de Veneza.

Peggy Guggenheim na montagem da exposição para a Bienal de Veneza, 1948. Fonte: AnotherMag.

Peggy Guggenheim e o Presidente Italiano Luigi Einaudi, na inauguração da exposição na Bienal de Veneza, 1948.
Fonte: Peggy Guggenheim Collection.
Nunca deixou de comprar obras de arte, apoiando artistas das mais variadas nacionalidades como Edmondo Bacci (1913-1978), Francis Bacon (1909-1992), Kenzo Okada (1902-1982), entre outros.
Este amor e orgulho pela Arte e pela sua colecção fazem com que, em 1951, Peggy decida começar a mostrá-la, bem como a sua casa, ao público.
Em 1969, expõe a sua colecção no museu do tio, em Nova Iorque. A partir daqui, estreita-se a ligação entre os dois mundos, sendo que, em 1970, doa o seu Palazzo e, em 1976, as suas obras à Solomon R. Guggenheim Foundation. Esta Fundação foi criada em 1973 como forma de promover o conhecimento da Arte e estabelecer um ou vários museus.

Peggy Guggenheim (à direita) na inauguração da exposição no Solomon R. Guggenheim Museum. Nova Iorque, 1969.
Fonte: Peggy Guggenheim Collection.
Peggy Guggenheim morre a 23 de Dezembro de 1979, em Itália.
Após a sua morte, o seu Palazzo tornou-se um dos mais conceituados museus de Arte moderna no mundo: Colecção Peggy Guggenheim.
A sua colecção foi desde logo uma das mais proeminentes colecções de Arte Cubista e Surrealista, numa altura em que estes movimentos não eram tidos em grande consideração por outros coleccionadores, incluindo o seu tio.
As obras que reuniu representam o seu gosto e estilo pessoal. Peggy Guggenheim fazia pouca distinção entre a vida pessoal e a profissional, pois, regra geral, os artistas que apoiava e cujas obras expunha se tornaram seus amigos. Segundo a neta e curadora Karole Vail (n.1959):
A sua vida e a sua colecção de Arte estavam completamente interligadas.
Apesar da época em que viveu, Peggy Guggenheim não teve problemas em assumir os seus gostos e intenções, quer no mundo da Arte como no mundo das relações pessoais. Fez o seu caminho como uma mulher livre e descomplicada, dando prioridade ao que a fazia feliz, preocupando-se e ajudando quem assim merecia, sem olhar a meios e ao que os outros poderiam dizer, sendo uma pioneira num mundo que ia reclamando mais espaço para as mulheres. Mesmo tendo um gosto artístico específico e limitado a certas épocas e estilos, Viveu a Arte como poucos o fazem.
Olho para a minha vida com grande alegria. Penso que foi uma vida muito bem sucedida. Sempre fiz o que quis e nunca me preocupei com o que os outros pensavam. Libertação das mulheres? Eu era uma mulher livre muito antes de haver um nome para isso.
Imagem de topo: Peggy Guggenheim na montagem da sua exposição na Bienal de Veneza, 1948. Fonte: It’s Liquid.
Sem dúvida que era uma mulher livre, toda a vida dela (aqui tão bem descrita) é um exemplo disso!
Deixou um bonito legado 🙂
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Sem dúvida, um exemplo a seguir.
Obrigada por leres. 🙂
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