Apesar de ter uma carreira de quase 80 anos, a obra de Maria Lassnig permaneceu quase escondida até poucos anos antes da sua morte. Após o seu devido reconhecimento, será notável o quão à frente esteve no campo da temática representada na pintura.
É sobre ela este artigo que assume uma nota mais pessoal. A análise formal à sua obra será o foco principal da próxima publicação.

Maria Lassnig no seu estúdio em Feistritz, 2008. Fonte: The Maria Lassnig Foundation.
Maria Lassnig nasceu em Kappel em Krappfeld, na Áustria, a 8 de Setembro de 1919, no rescaldo da Primeira Guerra Mundial. Ainda muito nova, mudou-se com a mãe e o padrasto para a cidade de Klagenfurt.
Começou a estudar para ser professora primária, mas mudou a sua direcção por pintar os retratos das crianças. Posto isto, entre 1940 e 1945, durante a Segunda Guerra Mundial, frequentou a Academia de Belas Artes de Viena. A coincidência com o tempo de guerra fez com que os seus desenvolvimentos artísticos saíssem prejudicados, pois os bombardeamentos e restrições do meio cultural isolaram a capital austríaca dos avanços do Modernismo que já se faziam sentir no resto da Europa e também nos Estados Unidos da América. Aprendiz de Arte numa altura em que a cultura nazi tentava excluir as vanguardas do curso da História, Lassnig sintetiza a herança do Realismo com um desejo radical de introspecção.
Após a graduação, abre um atelier em Klagenfurt. Mais do que um local de trabalho, este espaço servia também como ponto para os artistas e intelectuais da época.
Em 1948, conhece Arnulf Rainer (n. 1929), Ernst Fuchs (1930-2015) e Arik Brauer (1929-2021) membros do grupo Hundsgruppe (Grupo de Cães), do qual Lassnig também fará parte. Este era um grupo de Viena influenciado pelo Expressionismo Abstracto e pela Action Painting, que serão uma base para o trabalho da pintora, principalmente a nível do movimento da mão e do pincel aquando a altura de criação.
É no fim da década de 1940 que vai cunhar o termo “Instrospektive Ertebnisse” (Experiência Introspectiva), algo que viria a ser o centro de toda a sua criação artística. Estes trabalhos combinam a vida interior e exterior, permitindo que o pincel torne o primeiro visível a quem vê a obra.
Em 1951, viaja até Paris com o auxílio de uma bolsa escolar. Aqui conhece o artista André Breton (1896-1966) e os poetas Paul Celan (1920-1970) e Benjamin Péret (1899-1959) e descobre o Informalismo. Esta e outras visitas a Paris inspiraram Lassnig a experimentar a cor, a forma e a pintura informal, com uma grande influência do trabalho de René Magritte (1898-1967).

Maria Lassnig, 1929. Fonte: The Maria Lassnig Foundation.

Maria Lassnig durante os estudos na Academia de Belas Artes de Viena, c. 1940. Fonte: The Maria Lassnig Foundation.
Estes anos finais da década de 1940 e até quase ao final da década de 1960 são marcados por alguns acontecimentos. O primeiro, e no lado mais trágico, é a morte da sua mãe, em 1964, que leva Lassnig por um longo período de luto. Num lado mais positivo temos as várias exposições que conseguiu já no final da década. Entre Paris, Viena e Klagenfurt, entre exposições a solo e colectivas, a artista viu o seu trabalho a ser apoiado por amigos e algumas galerias.
A década de 1960 é marcada por duas mudanças de cidade e país. Exactamente no ano de 1960, muda-se para Paris, onde se faz já sentir uma lógica de consciência corporal que irá despoletar ainda mais a representação do corpo nas suas obras. Ainda que com esta consciência, a arte corporal em França só se tornou uma prática a partir de 1971 com os escritos de François Pluchart (1937-1988). Lassnig já trabalhava nesse campo desde a década de 1940, afirmando-o cada vez mais.
As estas pinturas sobre a consciência corporal dá o nome de Körperbewusstseinsbilder. Nelas retrata as sensações vividas pelo seu corpo, por meio das quais define a sua relação com o mundo. Será esta a temática central de toda a sua obra e a qual a artista defende que todos poderiam seguir: eu pinto sobre a consciência corporal desde que comecei a pintar. Posso recomendá-lo como uma actividade artística ideal, pois é inesgotável.
Esta decisão de pintar o corpo vai levá-la numa viagem de auto-representação. Embora fosse uma pessoa discreta, era, ao mesmo tempo, extremamente desinibida e por isso tornou o seu corpo, muitas vezes despido, o centro do seu trabalho muito antes do sentimento físico, a linguagem corporal e as relações de género se tornassem temas fulcrais do avant-garde internacional. É um ponto de viragem na Arte Moderna, embora só seja reconhecido anos mais tarde.
To veil or to reveil my face, to reveal my heart, my heart feeling? Or not to become a Woodhead, a machine, a camera, a respiration machine?

Maria Lassnig no seu estúdio em Paris, 1961. Fonte: The Maria Lassnig Foundation.

Maria Lassnig em Paris com a obra Sciencefiction, 1963. Fonte: The Maria Lassnig Foundation.
Já em 1968, Lassnig decide mudar-se para Nova Iorque onde ficará até 1980. Aqui tem dois estúdios, um em East Village e outro no SoHo, que lhe permitiam pintar em grande escala. É nesta altura que começam a surgir os auto-retratos realistas que viriam a ser uma parte significativa da sua obra.
Apesar de uma estadia de cerca de 12 anos na cidade norte-americana, a sua pintura vai ser mal entendida. Os portefólios que envia para as galerias e os vendedores voltam para trás com notas que caracterizavam a sua obra como estranha, mórbida e até doentia.
Com esta recusa da sua obra, decide avançar com um curso de filmes avant-garde na Escola de Artes Visuais de Nova Iorque. Estamos na Primavera de 1971 e Maria Lassnig dedica-se a produzir filmes baseados nos seus desenhos relativos à consciência corporal. Muitos destes filmes incluíam também trabalhos de stencil e spray e ainda efeitos de distorção das lentes que mudavam a percepção do que víamos, como um corpo nu, por exemplo. Este trabalho com a câmara permitiu-lhe trabalhar um contexto novo ao mesmo tempo que avançava por uma experiência subjectiva.
Ainda durante estes anos em Nova Iorque, passa o ano de 1978 em Berlim com o apoio de uma bolsa de uma programa de intercâmbio alemão. Aqui vai dedicar-se a pintar em aguarelas, uma matéria que, para a artista, lhe permitia uma ligação instantânea ao papel. Desta série de trabalhos resultam várias exposições, mas também um meio criativo ao qual iria voltar várias vezes durante a sua carreira.

Maria Lassnig (à esquerda) em East Village, Nova Iorque, c. 1969. Fonte: The Maria Lassnig Foundation.

Maria Lassnig no seu estúdio no SoHo, 1975. Fonte: The Maria Lassnig Foundation.
Lassnig vai estar muito envolvida nas questões de género e com os objectivos feministas. Podemos ver estes tópicos apresentados em Selfportrait, o seu filme mais conhecido, mas principalmente com a decisão que toma, em 1974, de co-fundar a associação Women/Artist/Filmaker, inc., juntamente com as artistas Carolee Schneemann (1939-2019) e Martha Edelheit (n. 1931). Para além disso, participou em vários protestos do Movimento da Libertação das Mulheres, com uma multidão da qual também fazia parte, por exemplo, Louise Bourgeois (1911-2010).
Apesar da temática de género ser uma constante no seu trabalho e do seu envolvimento em causas feministas, a artista rejeitava esse rótulo. Mas é visível a sua preocupação e tentativa de mudar as mentalidades, até quando a própria artista não casou nem teve filhos, assumindo que um homem, uma criança não é o meu destino. Esta afirmação traça já uma lógica de que as mulheres não nasceram obrigatoriamente para ser esposas, mães e donas de casa.

Women/Artists/Filmakers, Inc. no estúdio de Maria Lassnig, 6 de Março de 1975. Da esquerda para a direita: Martha Edelheit, Doris Chase, Carolee Schneemann, Maria Lassnig, Rosalind Schneider, Silvianna Goldsmith, Nancy Kendall e Susan Brockman. Fonte: The Maria Lassnig Foundation.

Maria Lassnig no seu estúdio em Viena, 1983. Fonte: The Maria Lassnig Foundation.
O ano de 1980 é marcado por dois acontecimentos importantes, sendo que o primeiro é a sua presença na Bienal de Veneza como representante de Áustria, juntamente com a artista Valie Export (n. 1940).
É também nesse ano que aceita um lugar como professora de Pintura na Universidade de Artes Aplicadas de Viena e assim deixa Nova Iorque. É a primeira mulher a leccionar não só nesta Universidade como também a primeira mulher a ter este cargo num país de língua alemã. Neste local, em 1982, decide criar um estúdio para ensinar filme de animação experimental.
Ainda no ano de 1982 participa na documenta 7 (exposição quinquenal de Arte Contemporânea que tem lugar em Kassel, na Alemanha) e tem também uma exposição itinerante de desenhos a percorrer a Alemanha.
No final da década de 1980, em 1988, recebeu o Austrian State Prize (prémio concedido anualmente ou bienalmente a artistas austríacos novos ou de idade médias de várias áreas). Já em 2013 recebeu o Leão de Ouro para Prémio de Carreira da Bienal de Veneza.

Aula de Maria Lassnig na Universidade de Artes Aplicadas de Viena, c. 1986. Fonte: The Maria Lassnig Foundation.

Maria Lassnig no seu estúdio em Viena, 1998. Fonte: Phillips.
O reconhecimento fora do seu país chegou já relativamente tarde e aparece devido a uma exposição de desenhos e aguarelas no Centro Georges Pompidou em 1995-1996 e a uma outra de pinturas no Musée des Beaux-Arts em Nantes, em 1999 que despoletam as instituições europeias a dar o verdadeiro valor à sua obra.
A primeira exposição retrospectiva do seu trabalho tem lugar na Serpentine Gallery, em Londres, no ano de 2008. Aqui foi considerada a maior descoberta do século, uma grande artista sobre quem tão pouco se sabia. A segunda acontece em 2009, na Mumok Gallery, em Viena.
Assim sendo, só nos últimos 15 anos de vida o seu trabalho começou a vender bem e começou a ser tida como uma influência para as gerações mais jovens de artistas. Foram necessários cerca de 50 anos, após inúmeras recusas por parte de galerias e vendedores, para ser reconhecida no mundo da Arte. É agora vista como uma das artistas mais importantes da segunda metade do século XX e início do século XXI, sendo que produziu até ao fim da sua vida.
As suas obras integram as colecções de vários museus por todo o mundo como o Centro Georges Pompidou (Paris), Kunstmuseum Basel (Suíça), Museum of Modern Art (Nova Iorque), Stedelijk Museum (Amesterdão), Museum of Contemporary Art Siegen (Alemanha), entre outros.

Maria Lassnig, 2002. Fonte: The Maria Lassnig Foundation.

Maria Lassnig na inauguração de uma exposição na Neue Galerie Graz (Nova Iorque), 2012.
Fonte: The Maria Lassnig Foundation.
Devido a uma obra marcada por auto-retratos, a sua ascensão tem sido associada ao aparecimento da selfie. Esta comparação não é, no entanto, totalmente justa, pois a selfie é uma representação de como alguém se apresenta ao mundo, enquanto que as pinturas de Lassnig mostram os seus sentimentos.
Maria Lassnig foi uma artista cuja obra evoluiu estilisticamente de forma constante, o que lhe permitiu manter-se sempre no espectro contemporâneo. Aquilo a que se manteve sempre fiel foi à pintura em si, independentemente dos estilos que escolhia seguir. Nos anos 1970, a própria diria: pintar é o significado da minha vida. O meu intelecto desenvolveu-se através da Pintura, tal como a minha abilidade de sentir e fazer julgamentos. Antes eu não era nada, sem ela eu não sou nada.
A artista austríaca viria a morrer em Viena a 6 de Maio de 2014.
Eu nunca contei os anos. Nunca fui nova. E agora não sou velha.never counted the years.
Um pensamento sobre “Maria Lassnig | Vida”