Destino, uma curta-metragem de Salvador Dalí e Disney

Quando dois génios se juntam, o resultado desse encontro é sempre algo inimaginável. Tendo isto em mente, é claro que uma reunião entre o pai dos filmes de animação Walter E. Disney e o artista surrealista Salvador Dalí não poderia ser diferente. Assim nasceu Destino, uma curta-metragem que precisou de quase seis décadas para ser concretizada e chegar aos olhos do público. É sobre ela o presente artigo.

Destino. Fonte: TNH1.

É em 1944 que Walter E. Disney (1901-1966) e Salvador Dalí (1904-1989) se conhecem. Esta relação, que pode parecer estranha, resulta, na verdade, da admiração que ambos sentiam um pelo outro, sendo que, a certa altura, Dalí terá considerado Disney como o grande surrealista americano.

Foi logo após o primeiro encontro que os dois começaram a falar numa possível colaboração. Dalí iniciou o trabalho na curta-metragem no final de 1945 e, ao fim de oito meses e de um trabalho conjunto com John Hench (1908-2004), apresentou, em 1946, 22 pinturas e mais de 135 storyboards, desenhos e esboços. Com base nestas ideias, os Disney Studios criaram uma primeira animação com cerca de 20 segundos. Neste clip aparecem duas tartarugas com uma cabeça nas costas que se deslocam uma em direcção à outra, fazendo uma bailarina aparecer entre essas mesmas cabeças.

Porém, os constrangimentos que advieram da Segunda Guerra Mundial fizeram com que o projecto ficasse guardado, sendo resgatado 53 anos mais tarde, em 1999, por Roy E. Disney, sobrinho de Walter. Este atraso significaria que nenhum dos artistas de quem partiu a ideia original teria a oportunidade de ver o resultado final daquilo que ambos delinearam.

Salvador Dalí e Walter E. Disney, em Barcelona, 1961. Fonte: OrlandoWeekly.

Salvador Dalí, Destino, caneta sobre papel, 1946. Fonte: DesafioCriativo.

Destino, fragmento da curta-metragem, 2003. Fonte: IAMAG.

A produção de Destino começou, então, a ser finalizada na mesma altura em que o estúdio preparava o filme Fantasia 2000. Para isto, os Disney Studios decidiram que era necessário chamar um dos membros da equipa original e assim reaparece John Hench. Na altura, Hench, com 90 anos, estava já reformado de uma carreira de 65 anos com a Disney, mas aceitou voltar ao projecto, tornando em realidade algo que há muito havia começado. O seu envolvimento em toda a concretização da curta-metragem valeu-lhe o aparecimento nos créditos finais da mesma como co-autor ao lado do próprio Salvador Dalí.

Os desenhos de Dalí foram esmiuçados e organizados por uma equipa de 25 animadores que teve a ajuda não só de John Hench para esta tarefa, mas também dos diários de Gala (1894-1982), a esposa de Salvador Dalí, que se revelaram como um dos elementos fundamentais para perceber a ordem dos desenhos do artista. E assim, apesar de na ideia inicial do projecto residir a intenção de que esta curta fosse realizada com actores e acessórios reais que seriam combinados com cenários e desenhos animados, criaram a curta-metragem no modo tradicional de animação, inserindo apenas alguns elementos feitos a computador. Destino chega ao público em 2003.

Sendo este o trabalho de um artista surrealista é normal que as potencialidades que os sonhos permitem marquem a história. O que quero dizer é que não vale a pena tentar encontrar um sentido lógico para tudo o que vemos nestes minutos, pois somos continuadamente levados por diversas alterações e cenas implausíveis.

Salvador Dalí, Destino, lápis sobre papel, 1946. Fonte: Pinterest.

Destino, fragmento da curta-metragem, 2003. Fonte: Polygon.

Destino, fragmento da curta-metragem, 2003. Fonte: ArchDaily.

A música que povoa toda a história é uma balada espanhola escrita pelo compositor mexicano Armando Domínguez. O seu título original era Destino, mas após a adaptação da letra para inglês passou a denominar-se My Destiny of Love. Uma versão foi gravada na década de 1940 com a voz de Dora Luz e após alguns arranjos para remover saltos, riscos e assobios, foi possível inclui-la na forma final da curta-metragem.

Esta música ecoa durante os quase sete minutos da animação, sete minutos esses em que não há diálogos, mas também não são necessários. Não se sente a falta da conversa entre as personagens, pois toda a história é perceptível: Dalí ilustrou a história de amor amaldiçoada entre Cronos (que surge como a personificação do Tempo) e uma humana de nome Dahlia. Ambas as personagens estão intimamente ligadas ao artista surrealista: Dahlia pela parecença com o nome, o mesmo escolhido por Dalí; Cronos devido ao fascínio que este nutria pela mitologia grega.

Dahlia assume-se com a personagem principal da história, embora esta seja sobre a impossibilidade que Cronos tem de amar um mortal, algo que nos é desde logo mostrado pelo facto deste ser feito de pedra, impedindo-lhe, então, esse relacionamento. A curta-metragem acompanha-a enquanto dança por um cenário muito semelhante ao da pintura A Persistência da Memória, de 1931. É enquanto ela deambula por todos os elementos apresentados e já referidos que Cronos a vê e se tenta aproximar. Ao longo de toda a animação, são vários os elementos do cenário, principalmente arquitectónicos, que vão reforçar essa tal impossibilidade que, em alguns momentos, passa também para a própria Dahlia.

Salvador Dalí, Destino, caneta sobre papel, 1946. Fonte: Pinterest.

Destino, fragmento da curta-metragem, 2003. Fonte: TheHartfordCourant.

Destino dá vida às pinturas de Salvador Dalí e também ela se faz habitar de relógios que derretem, formigas, telefones gigantes, arquitectura desconstruída, corpos, entre outros elementos que associámos rapidamente ao trabalho do artista espanhol. Ele próprio referiu, inclusive, que incluiu aqui todo o seu reportório de objectos e alucinações surrealistas, pois acreditava que um filme tornaria mais fácil para o público ter acesso ao Surrealismo do que teriam através da escrita e da pintura.

Vemos objectos a quebrar e a derreter, paisagens que se fundem entre elas e uma personagem feminina que atravessa várias mudanças drásticas no decorrer da história. Dahlia tenta encontrar uma forma que se adequasse à de Cronos, para conseguirem ficar juntos na eternidade e na imortalidade do Deus.

Para além d’A Persistência da Memória, podemos encontrar referências a mais algumas obras de Dalí, como O Grande Masturbador (1929), Os Elefantes (1948), Girafa em Chamas (1937), Mercado de Escravos com o Busto Desaparecido de Voltaire (1940) e O Enigma de Hitler, só para nomear algumas.

Destino, fragmento da curta-metragem, 2003. Fonte: DailyArtMagazine.

Salvador Dalí, Colóquio Sentimental, óleo sobre tela, 1944. Fonte: TheDalíMuseum.

Destino, fragmento da curta-metragem, 2003. Fonte: ArchDaily.

Destino apresenta-se como uma obra em três dimensões do artista surrealista que, ainda assim, não perde a ligação ao mundo a que a Disney nos habituou. Vemos isso na mulher que nos é apresentada e que se assemelha a uma princesa, mas também na própria música que acompanha toda a história. Um sonho surrealista que nos inunda com a mesma sensação que muitos dos filmes do aclamado estúdio, principalmente os mais antigos.

Para Dalí, Destino representava “uma demonstração mágica das questões da vida dentro do labirinto do tempo”, enquanto para Disney era “uma simples história de uma jovem garota em busca do amor verdadeiro”.

Um projecto que levou cerca de 60 anos a ser concretizado, mas cujo distanciamento temporal não reduziu a afectividade com que o público o recebeu. Destino chegou, inclusive, a ser nomeada e a receber o Oscar para melhor curta-metragem de animação, em 2004.

Uma história de amor impossível que uniu Walter E. Disney e Salvador Dalí, dois dos maiores génios artísticos do século XX, no que começou como uma mera parceria de trabalho, mas que se tornou numa amizade de longa data. Nenhum viveria para ver o trabalho finalizado, mas são palpáveis as suas características de criação ao longo destes minutos de animação.

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