Ensaio Sobre a Cegueira e o Museu de um Quadro | História da Arte na Literatura

Se já leram o livro Ensaio Sobre a Cegueira de José Saramago, sabem que este se encontra repleto de referências à História da Arte. Seja com A Liberdade Guiando o Povo de Eugène Delacroix, A Parábola dos Cegos de Pieter Bruegel, ou a descrição de quantas figuras de Santos habitam numa Igreja, são várias as obras que vão surgindo ao longo desta obra literária.

Há, no entanto, um capítulo em que essa ligação se intensifica, pois há um cego que nos conta a última coisa que viu antes de cegar. Ele estava num museu e num só quadro viu vários. A descrição que Saramago nos dá no fim deste oitavo capítulo não é acompanhada do nome dos artistas nem do título das obras e é com esse intuito que surge este artigo: apresentar as obras a partir da descrição que o homem agora cego dá aos colegas. Se já leram o livro, podem agora recordar esse momento da narrativa; se ainda não leram, ficam já com uma base para quando o fizerem.

O último que eu vi foi um quadro, Um quadro, repetiu o velho da venda preta, e onde estava, Tinha ido ao museu, era uma seara com corvos e ciprestes e um sol que dava a ideia de ter sido feito com bocados de outros sóis, Isso tem todo o aspecto de ser um holandês, Creio que sim (…)

– Saramago, 2014, p. 142

Vincent van Gogh, Campo de Trigo com Corvos, óleo sobre tela, 1890, Van Gogh Museum, Amesterdão. Fonte: Wikipedia.

Vincent van Gogh, Campo de Trigo com Ciprestes, óleo sobre tela, 1889, MET Museum, Nova Iorque. Fonte: METMuseum.

Esquerda: Vincent van Gogh, A Noite Estrelada, óleo sobre tela, 1889, MoMA, Nova Iorque. Fonte: MoMA.
Direita: Vincent van Gogh, Caminho com Cipreste e Estrela, óleo sobre tela, 1890, Kröller-Müller Museum, Otterlo.
Fonte: VincentvanGogh.

A descrição deste quadro combinado começa com uma menção a Vincent van Gogh (1853-1890), mas de uma forma peculiar, pois a obra referida pelo cego, parece combinar ainda várias obras do artista holandês, sendo que Campo de Trigo com Ciprestes será a que mais se destaca. Ciprestes é mais uma alusão óbvia, mas depois ressalta a questão de sabermos que esta pessoa, antes de ficar cega, viu um sol “feito com bocados de outros sóis”, no entanto nenhuma das duas obras referidas mostra explicitamente o sol, mesmo sendo pinturas do dia e não da noite. Podemos, então, estar perante um elemento de Caminho com Ciprestes e Estrela, mas pode ser de igual modo uma ligação à A Noite Estrelada, que, embora represente uma cena nocturna, contém as tais árvores, uma lua forte como o sol e várias estrelas que parecem dela emergir.

Seja como for, as quatro obras mencionadas remontam aos anos de 1889 e 1890, altura em que Van Gogh esteve internado por vontade própria, primeiro no Asilo de Saint-Rémy e depois no Hospital de Saint-Paul. Também todas as obras remetem para uma técnica que relembra o Pontilhismo, com pinceladas curtas e rápidas, sendo quase uma forma de pintar contra o desespero que Van Gogh sentia. Os tons incidem sobretudo no amarelo, no azul e no verde. A Noite Estrelada destaca-se como tendo a paleta cromática mais pesada, embora com algumas indicações luminosas vindas das estrelas e da lua.

Não deixa de ser curioso notar a ligação que podemos traçar entre o próprio pintor holandês e os cegos de Saramago, sendo que estamos perante duas situações de internamento. Podemos ligar o pronúncio do fim de vida na Van Gogh na suas pinturas com o traçar do destino trágico que aguarda as personagens da obra de Saramago.

(…) mas havia também um cão afundar-se, já estava meio enterrado o infeliz, Quanto a esse, só pode ser de um espanhol, antes dele ninguém tinha pintado assim um cão, depois dele ninguém mais se atreveu, Provavelmente (…)

– Saramago, 2014, p. 142

Francisco de Goya, Cão Semi-Afundado, método misto em mural transferido para tela, 1820-1823, Museo del Prado, Madrid.
Fonte: MuseodelPrado.

Esta obra de Francisco de Goya (1746-1828) pertence à série “Pinturas Negras” as quais consistiam em murais que decoravam a sua casa, conhecida como “La Quinta del Sordo”, e que recebem esse nome por o pintor espanhol ter utilizado diversos pigmentos escuros e pretos. Neste caso, também a temática se insere nesse perfil, sendo considerada a tela mais enigmática da série. Nela vemos uma área não definida colorida a apenas um tom, da qual, na parte inferior, surge a cabeça de um cão. Essa cabeça é mesmo tudo o que conseguimos ver deste animal e por isso não é completamente possível perceber o que ele faz, daí a variação de títulos pela qual a obra é tratada: Cão, Cabeça de Cão, o acima mencionado, entre outros. Vemo-lo com um olhar vazio e com o focinho a tentar manter-se acima da barreira que está à sua frente, daí haver um certo empurrão para considerá-lo um cão em afogamento.

A obra apresenta-se em tons beges e castanhos, sendo que a parte inferior se destaca como mais sombria. A cabeça do cão, a preto, está numa zona em que o fundo é iluminado por um bloco de tinta branca. Tratando-se de uma pintura que foi transferida de uma parede para uma tela, são visíveis as marcas das rachas e da já acentuada perda de tinta.

O seu significado foi ligado à ideia da inevitabilidade da morte, algo que estará conectado com a própria vida de Goya que, nesta altura, tinha já sobrevivido a duas doenças que poderiam ter tido um resultado fatal. Era provável que o pintor se visse a braços com a convicção cada vez mais forte de que não viveria para sempre e que o fim poderia estar muito próximo.

(…) e havia uma carroça carregada de feno, puxada por cavalos, a atravessar um ribeira, Tinha uma casa à esquerda, Sim, Então é de inglês, Poderia ser (…)

– Saramago, 2014, p. 142

John Constable, A Carroça de Feno, óleo sobre tela, 1821, The National Gallery, Londres. Fonte: NationalGallery.

Embora a descrição do cego comece por nos referir uma carroça com feno, o facto é que a que aqui vemos em primeiro plano está vazia, enquanto a que está carregada aparece do lado direito da linha central da composição, onde vemos um grupo de trabalhadores que se ocupam de recolher o tal feno. Esta primeira carroça atravessa uma ribeira para ir para o prado e é puxada pelos cavalos mencionados. Esta cena, embora tenha sido pintada no atelier de John Constable (1776-1837) em Londres, reporta-se a uma zona de moinho em Flatford, moinho o qual foi operado pela família do pintor inglês durante quase um século. A casa à esquerda, ocupada na altura pelo fazendeiro Willy Lott, ainda sobrevive nos dias de hoje.

Esta é uma pintura muito característica de Constable, que se dedicava sobretudo a registar paisagens desta zona, sendo que fazia vários desenhos preparatórios dos locais que queria pintar, para mais tarde criar a composição final no referido atelier. O pintor tirou uma grande influência dos mestres holandeses, mas o realismo dos seus trabalhos conferiu-lhe um nível de originalidade que não havia na altura, como acontece, por exemplo, com a utilização do verde vivo nas folhagens, aproximando-se das cores que ele via na realidade e não das que os quadros antigos mostravam. Outro detalhe que o distingue é o facto de salpicar a tinta em vez de a aplicar individualmente, algo que acontece novamente com as folhas das árvores e também com alguns detalhes na água, os quais podemos ver como tendo sido raspados. Estas características viriam a influenciar os artistas da Escola de Barbizon e os Impressionistas.

(…) mas não crieo, porque havia lá também uma mulher com uma criança ao colo, Crianças ao colo de mulheres é do mais que se vê em pintura, De facto, tenho reparado, O que eu não entendo é como poderiam encontrar-se em um único quadro pinturas tão diferentes e de tão diferentes pintores (…)

– Saramago, 2014, p. 142

Esquerda: Pablo Picasso, Mãe e Criança, óleo sobre tela, 1901, Harvard Art Museum. Fonte: PabloRuizPicasso.
Direita: Duccio di Buoninsegna, A Virgem e o Menino, têmpera e ouro sobre madeira, c. 1300, MET Museum. Fonte: METMuseum.

Esquerda: Paul Gauguin, Mulher Polinésia com Crianças, óleo sobre tela, 1901, Art Institute of Chicago. Fonte: ARTIC.
Direita: Mary Cassatt, Cuidados Maternais, pastel, c. 1891, Fundação Calouste Gulbenkian. Fonte: Gulbenkian.

Sem dúvida que, tal como indica o velho da venda preta, pinturas de mulheres com crianças ao colo são um dos temas mais explorados e recriados na História da Arte. Sejam eles de conotação religiosa ou de uma representação comum, aparecem no mundo das Artes desde sempre. Tanto podem ser pinturas que apenas mostram esse momento de ligação entre mãe e filho, ou não, como podem ser pormenores em histórias mais complexas.

Como a descrição fornecida pelo cego que visitou o museu é, neste caso, muito escassa, fica uma selecção de obras que se reportam a esse tema.

(…) E estavam uns homens a comer, Têm sido tantos os almoços, as merendas e as ceias na história da arte, que só por essa indicação não é possível saber quem comia, Os homens eram treze, Ah, então é fácil, siga (…)

– Saramago, 2014, p. 142

Leonardo da Vinci, A Última Ceia, têmpera e óleo sobre preparado de gesso, 1495-1498, Convento de Santa Maria delle Grazie, Milão.
Fonte: CulturaGenial.

Quando nos falam de uma mesa à qual estão sentadas treze pessoas, sabemos de imediato que se trata da última ceia de Jesus com os doze apóstolos, cena essa que se tornou uma das obras mais aclamadas de Leonardo da Vinci (1452-1519). Vemos Jesus ao centro com seis discípulos de cada lado. Na mesa vê-se alguma agitação, pois o instante captado será aquele em que Cristo diz “um de vocês me há-de trair”, deixando os restantes a tentar perceber quem o fará.

Esta é uma pintura mural que se encontra na parede do refeitório do Convento de Santa Maria delle Grazie. Não bastasse esta curiosidade, acresce o facto de Da Vinci ter decidido retratar a cena a seco e não no modo habitual de fresco. Isto aliado a outros elementos, como a adição de folha de ouro para conseguir o máximo de detalhe, faz com que esta obra tenha já sido restaurada algumas vezes, pois a sua matéria e pigmentação desaparecem mais rapidamente do que habitual com outras técnicas.

(…) Também havia uma mulher nua, de cabelos louros, dentro de uma concha que flutuava no mar, e muitas flores ao redor dela, Italiano, claro (…)

– Saramago, 2014, p. 142

Sandro Botticelli, O Nascimento de Vénus, têmpera sobre tela, 1483, Galleria degli Uffizi, Florença. Fonte: Uffizi.

Esta obra de Sandro Botticelli (1445-1510) mostra a Deusa do amor e da beleza no momento em que chega a terra, neste caso à ilha do Chipre. Como referido pelo cego, ela apresenta-se nua e tem cabelos loiros e longos que cobrem a zona da púbis. O cabelo e as flores mencionadas movem-se de acordo com o vento que avança desde o lado esquerdo da composição. Do lado direito, surge uma mulher, normalmente associada à Primavera, com um tecido rosa e de padrão floral, mostrando a intenção de cobrir o corpo nu da Deusa. Botticelli mostra o conhecimento e influência das obras da Antiguidade Clássica neste trabalho, algo notório não só pelas poses modestas de algumas figuras, mas também pela preocupação de cobrir determinadas zonas do corpo, como já referido, da Deusa, mas também dos ventos.

Embora não haja nenhum registo sobre o assunto, crê-se que este quadro tenha surgido por encomenda de alguém da família Médici, ligação feita pelo representar das laranjeiras, consideradas o emblema da família.

(…) E uma batalha, Estamos como no caso das comidas e das mães com crianças ao colo, não chega para saber quem pintou, Mortos e feridos, É natural, mais tarde ou mais cedo todas as crianças morrem, e os soldados também, E um cavalo com medo, Com os olhos a quererem saltar-lhe das órbitas, Tal e qual, Os cavalos são assim (…)

– Saramago, 2014, pp. 142-143

Pablo Picasso, Guernica, óleo sobre tela, 1937, Museo Reina Sofia, Madrid. Fonte: MuseoReinaSofia.

É um facto que também de muitas guerras se faz a História da Arte, mas neste caso em específico é referido um detalhe que ajuda a determinar qual é a obra: o cavalo. Este animal surge praticamente no centro da famosa Guernica, a tela de grandes dimensões na qual Pablo Picasso (1881-1973) reproduziu o horror vivido durante a Guerra Civil Espanhola, mais especificamente o bombardeamento da cidade de Guernica, que teve lugar a 26 de Abril de 1937.

Esta composição a preto, branco e cinzento, cores escolhidas para intensificar a sensação de drama, é normalmente vista como estando dividida em dois grupos: o dos animais, composto pelo tal cavalo, um touro e um pássaro; e o das pessoas que povoam grande parte da tela. Seja de que grupo forem, todos mostram o terror de um momento de bombardeamento, bem como as suas consequências, sendo que podemos ver corpos feridos e amputados. A linguagem cubista de figuras decompostas alia-se a este tumulto.

(…) e que outros quadros havia mais nesse seu quadro, Não cheguei a sabê-lo, ceguei precisamente quando estava a olhar para o cavalo.

– Saramago, 2014, p. 143

Este momento em que os cegos contam uns aos outros o que estavam a ver quando cegaram acontece praticamente a meio do livro de José Saramago. Embora, no altura de leitura, pareça não ser nada para além de uma história, na restante narrativa tornam-se óbvias as várias pontes que são possíveis de criar entre as pinturas referidas e os acontecimentos vividos pelo grupo de cegos que acompanhamos. Desde a loucura do momento às guerras que acontecem e os problemas que delas advêm às tentativas de sobrevivência sem conseguir ver o que está no caminho, da ligação afectiva que se cria entre eles ao espaço que vai crescendo para eles terem oportunidade de renascer, são algumas das conexões possíveis de criar. As descrições deste cego ficam-nos na memória e vão surgindo ao longo das restantes páginas, dando-nos cenários e ideias de relação para acompanhar este Ensaio Sobre a Cegueira.

10 pensamentos sobre “Ensaio Sobre a Cegueira e o Museu de um Quadro | História da Arte na Literatura

  1. Mas que boa publicação!
    Primeiro, parabéns pela originalidade, pois ao ler um livro lembraste-te de fazer uma publicação sobre as obras que lá surgem *GENIUS*.
    Segundo, adoro a escolha do livro. É dos meus preferidos (dos poucos, vá) que ainda li do Saramago.
    E por fim, gostei muito de conhecer as obras faladas no livro e que com tanto detalhe nos tens habituado.

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  2. O artigo é muito interessante, instigante também pois me fez despertar a vontade de reler o Ensaio, maravilhoso livro de Saramago que trata, também da questão da divisão de classes e das pessoas que, quaisquer que sejam as situações, cuidam de explorar e submeter outras.

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