No passado dia 23 de Outubro, inaugurou no Centro Português de Fotografia, no Porto, a exposição Nicolás Muller: O Olhar Comprometido, que nos leva numa viagem por entre 126 fotografias que o fotógrafo húngaro registou entre 1935 e 1967. Deste conjunto de imagens, algumas são inéditas, nunca tendo sido mostradas ao público; outras, embora já conhecidas, são agora mostradas no seu formato original.

Para perceber o que nos mostra a exposição, é necessário falar um pouco sobre o percurso de vida do fotógrafo.
Nicolás Muller nasceu na Hungria, em 1913. Estudou Direito e Ciências Políticas no seu país Natal, mas, influenciado pela estética da Bauhaus e do Construtivismo Russo, começou a retratar as duras condições de vida e de trabalho dos camponeses. Assim, durante o ano de 1937 dedicou-se a percorrer a Hungria humilde, onde os trabalhadores do campo moravam em casebres e mal tinham o que comer. Os seus registos, que o próprio entendeu que podiam ser utilizados enquanto arma, fariam com que uma das suas reportagens fotográficas fosse considerada antipatriótica pela direita húngara.
Embora aqui renha permanecido durante os anos que antecederam a Segunda Guerra Mundial, a sua origem judaica acabou por o obrigar a emigrar para a salvar a sua vida. Abandona a Hungria aos 25 anos, em 1938, e fixa-se em Paris. É na capital francesa que começa a colaborar com revistas e a relacionar-se com outros fotógrafos húngaros como Brassaï (1899-1984) e Robert Capa (1913-1954), mas também com artistas de outras áreas como Pablo Picasso (1881-1973).

Nicolás Muller com Samu (auto-retrato), Tânger, c. 1942. Arquivo da Comunidade de Madrid, Fundo Nicolás Muller.

Esquerda, em cima: Nicolás Muller, Construção de Diques V, Hungria, 1936. Colecção Ana Muller.
Esquerda, em baixo: Nicolás Muller, Camponês a Descarregar Sacos, Hungria, 1936. Colecção Ana Muller.
Direita: Nicolás Muller, Menino a Trabalhar na Construção de Diques III, Hungria, 1936. Colecção Ana Muller.

Nicolás Muller, Fotógrafo a Trabalhar na Torre Eiffel, Paris, 1939. Colecção Ana Muller.
No entanto, o avançar da guerra fez com que se tornasse novamente necessário fugir. Em 1939, conseguindo que a France Magazine lhe encomendasse uma reportagem sobre Portugal, vem para o nosso país, onde pretendia fazer um retrato de António de Oliveira Salazar (1889-1970). Como acabou por não o concretizar, dedicou-se às pessoas que faziam as ruas portuguesas (passando por várias cidades), aos seus pés descalços, as barcaças, o descarregamento de sal, entre outros motivos. No entanto, este retrato do paraíso à beira-mar plantado não correspondia à imagem que o governo queria transmitir. Assim, Muller é capturado pela PIDE. A sua condenação consistiu num aviso de 15 dias para abandonar o país.
Marrocos, mais precisamente Tânger, foi o destino que se seguiu e onde permaneceu durante nove anos. Sendo que a cidade pertencia ao protectorado espanhol, também aqui eram óbvios alguns sinais relativos aos regimes da altura. Para além disso, trata-se de mais uma população a viver em más condições que Muller representa.
Daqui consegue, através de um contacto com a Revista de Occidente, organizar uma expedição a Espanha, onde se instala definitivamente em 1947, pedindo nacionalidade espanhola em 1960. Apesar de também aqui haver um regime ditatorial, a sua obra não vai enfrentar o mesmo problema que em Portugal. Em 1975, retira-se para as Astúrias, onde viria a falecer no ano de 2000.


Nicolás Muller, A Sombra, Marrocos, c. 1945. Colecção Ana Muller.
Ocupando duas salas do Centro Português de Fotografia, Nicolás Muller: O Olhar Comprometido mostra, como já mencionado, um total de 126 fotografias, que se dividem consoante o país que representam. Em termos de números são 29 fotografias de Espanha, 26 de França, 26 da Hungria, 24 de Marrocos, 20 de Portugal e um auto-retrato que assinala o início desta viagem expositiva. Todas as fotografias pertencem à colecção de Ana Muller, filha do fotógrafo, e foram encontradas em 2015 pela própria, após o encerramento definitivo do Estúdio Muller. A par destas, são exibidas também algumas imagens que o Arquivo Regional da Comunidade de Madrid conserva.
O espaço de 30 anos que alberga as imagens acompanha o percurso que Muller fez desde o país que o viu nascer até aquele a que viria a chamar casa para o resto da vida. O seu intuito foi sempre o de registar a forma como decorria a vida dos trabalhadores deste tempo e as condições desumanas a que estavam sujeitos. Mesmo havendo esta incidência sobre a mesma classe, é interessante ver o confronto entre os vários países e as distintas décadas em que Muller os fotografa, sendo que alguns deles estavam sobre o comando nazi e os outros, embora tenham escapado a isso, viviam com a sua própria ditadura.
Como não poderia deixar de ser, tendo em conta as décadas a que remontam as imagens em questão, o preto e branco inunda estes espaços, ajudando na criação de um sentido documental, emotivo e marcante. Muitas das fotografias apresentadas, incluindo as que mostram Portugal, foram captadas através de um ângulo mais acima da cena, acentuando a ideia da inferioridade que a vida daquelas pessoas representava para os que estavam no poder e na classe de elite. Para além do trabalho no exterior, há também algumas imagens que remetem para o trabalho minucioso e repetitivo vivido nas fábricas.
Os intervenientes principais são, na sua maioria, os trabalhadores, mas há também um grande número de imagens que nos mostram crianças. Estas ilustram um pouco da esperança que existe ao mesmo tempo que retratam as condições difíceis e desumanas em que vivem. Elas habitam estas ruas e estes campos que avançam devido ao esforço corporal destes homens e mulheres. Tanto as crianças como alguns momentos de lazer são registados em modo close-up, logo de forma mais próxima do que acontece com as fotografias de trabalho.

Nicolás Muller, O Rio Huecar, Cuenca, c. 1952. Arquivo da Comunidade de Madrid, Fundo Nicolás Muller.

Nicolás Muller, Fábrica de Garrafas (detalhe), Espanha, c. 1952. Arquivo da Comunidade de Madrid, Fundo Nicolás Muller.

Nicolás Muller, Mercado de Vilar Formoso V, Portugal, 1939. Arquivo da Comunidade de Madrid, Fundo Nicolás Muller.

Esquerda: Nicolás Muller, Banhista a Apanhar Sol, Hungria, 1935. Colecção Ana Muller.
Direita: Nicolás Muller, Banhistas, Hungria, 1935. Colecção Ana Muller.
Para além de ser uma excelente oportunidade para ver as obras inéditas já mencionadas, é esse mesmo facto que nos permite ver pela primeira vez esses retratos específicos de Nicolás Muller, dando-nos uma visão mais alargada sobre a vivência nestes países durante aqueles anos. Um momento de homenagem aos que ajudaram a construir os países que hoje conhecemos, tendo sido também eles os que mais sofreram com os governos que os chefiavam.
Nicolás Muller: O Olhar Comprometido pode ser visitada até 20 de Fevereiro de 2022, de Terça a Sexta-Feira, das 10h às 18h e aos fins-de-semana das 15h às 19h.
A entrada é gratuita.
Para mais informações, podem consultar a página do Centro Português de Fotografia.