O dia 11 de Novembro é assinalado como Dia de São Martinho, marcando o dia em que Martinho, o homem que lhe dá nome, foi sepultado em Tours, corria o ano de 397.
São Martinho ficou conhecido por ter dividido a sua capa com dois mendigos num dia de chuva e frio. Acabando ele próprio por não ter com que se proteger do mau tempo, diz a lenda que os céus se abriram e deram lugar ao sol – Verão de São Martinho.
São várias as formas de celebrar este dia. Em Portugal há o costume de saltar à fogueira e de comer castanhas acompanhadas de jeropiga. É também a altura do ano em que se prova o vinho novo.
É nesta celebração que se foca o presente artigo, fazendo abordagem a uma obra do pintor José Malhoa que mostra os festejos deste dia numa taberna em Figueiró dos Vinhos, vila onde se estabeleceu em 1883. De título Festejando o São Martinho, mas também conhecida como Os Bêbados, aqui fica uma análise a uma das obras mais conhecidas do pintor das Caldas da Rainha.

José Malhoa, Festejando o São Martinho ou Os Bêbados, óleo sobre tela, 1907. Museu José Malhoa, Caldas da Rainha.
José Malhoa (1855-1933) foi um pintor de costumes rurais que desenvolveu uma prática de retrato de carácter naturalista de modelos algo secundários na vida nacional. Tinha, desta forma, o empenho em mostrar de forma real e sentimental o seu país, retratando-a de forma realista e a ele contemporânea.
O retrato tem, assim, um papel de destaque na obra de Malhoa e é ele que leva o artista à pintura de costumes, temática na qual a sua pintura se define. Algo que se compreende, sendo que muitos dos seus clientes eram burgueses com origens no campo, querendo essa ligação às raízes a partir de uma destas pinturas.
Pinta situações rústicas que representa uma vez e que não repete, fazendo quase uma documentação etnográfica com as suas telas, como se sentisse ser seu dever nacional registar estas vivências. Fidedigno testemunho documental que se constituiu num documento genuíno da sua nacionalidade, tornando o pintor numa espécie de Historiador do seu tempo através do pincel.
O Naturalismo em Malhoa remete-se sobretudo para o Homem que é ele próprio inevitavelmente Natureza. Assim, muitas das suas obras (nas quais se inclui a tela em análise) resultam de um imaginário construído pelo pintor e que é facilmente aceite como um retrato da suposta identidade nacional da época.

José Malhoa. Fonte: FacebookMemóriasdeFigueiró.
A obra Festejando o São Martinho, de 1907, pertence ao Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado, em Lisboa, desde 1911, tendo sido adquirida ao próprio artista em 1908 pelo Legado de Valmor. Desde 2015 está em depósito de longa duração no Museu José Malhoa, nas Caldas da Rainha.
Nesta pintura, num ambiente abafado de taberna, vemos seis homens em volta de uma mesa, na qual estão sobras de sardinhas, couves e castanhas, a celebrar o São Martinho com muito vinho. Percebemos, pelo estado sonolento e pelo rosado das faces dos retratos, que a festa já vai longa. Os homens sobre quem mais incide a luz, assumindo o protagonismo, são os que se notam mais tocados pelo efeito da bebida: à esquerda, um ferreiro que se encontra deitado para trás, ainda com o avental do ofício e com a camisa aberta; o outro está debruçado sobre a mesa e com os olhos semi-cerrados que tentam ainda perceber quem o fita, a mão direita segura um jarro de vinho e a esquerda está pendente ao lado da mesa. Os outros quatro, um pouco mais despertos, olham à volta com uma mistura entre a alegria e o pasmo pela cena.
Quatro dos homens representados são conhecidos e os seus nomes foram registados: Jerónimo Godinho, Alfredo Ventura, Júlio Soares Pinto e Julião dos Santos. A utilização de pessoas como modelos para as suas obras, permite a Malhoa alcançar um rigor anatómico e real, dando ainda mais significado à sua curiosidade e vontade de representar as vivências reais.

José Malhoa, Festejando o São Martinho ou Os Bêbados (detalhe), óleo sobre tela, 1907. Museu José Malhoa, Caldas da Rainha.

José Malhoa, Festejando o São Martinho ou Os Bêbados (detalhe), óleo sobre tela, 1907. Museu José Malhoa, Caldas da Rainha.
Festejando o São Martinho é um quadro real da natureza humana que serve enquanto objecto de arte. Um ambiente de taberna que deixa adivinhar as vidas difíceis dos retratados e que carrega a obra com uma dualidade: por um lado, representa figuras que são desprezadas socialmente e que acarretam dor; por outro, mostra-nos uma cena repleta de folia característica da vida popular. O escuro da vida com o claro de um momento de lazer.
Além dessa dualidade, vemos ainda o início, o meio e o fim do que é a ingestão excessiva de álcool. Do lado esquerdo, por detrás do caído, vemos alguém que continua a beber, tendo a malga e a jarra na mão, apresentando ainda alguma lucidez nos seus actos; depois temos o homem caído sobre a mesa no centro da composição e em quem vemos a falta de orientação e de forças; por fim, temos o homem deitado para trás que já adormeceu tal o seu estado – é a personagem principal do quadro, mas o seu dormitar acaba por o afastar do convívio. Os outros três homens estão ainda sóbrios e atentos à cena que se desenrola à sua volta.

José Malhoa, Festejando o São Martinho ou Os Bêbados (detalhe), óleo sobre tela, 1907. Museu José Malhoa, Caldas da Rainha.

José Malhoa, Festejando o São Martinho ou Os Bêbados (detalhe), óleo sobre tela, 1907. Museu José Malhoa, Caldas da Rainha.

José Malhoa, Festejando o São Martinho ou Os Bêbados (detalhe), óleo sobre tela, 1907. Museu José Malhoa, Caldas da Rainha.
Os tons do quadro focam-se sobretudo nos castanhos e beges. A pincelada apresenta-se cromaticamente rigorosa com uma textura um tanto ou quanto Impressionista (um elemento que caracteriza algumas das obras de Malhoa), mas que deixa também transparecer as texturas dos variados materiais, bem como a oleosidade da pele destes homens, consequência do estado em que se encontram. A luz parece agarrá-los e reflectir mais do que seria suposto.
Essa luz revela-se de pouca intensidade e representa um momento de abundância tenebrista, incidindo em quem tem mais importância na composição, fazendo-se aqui um jogo de claro-escuro que relembra o Barroco. O fundo escuro quase engole dois do homens cuja vivência na obra não se revela assim tão necessária.
O Naturalismo de Malhoa é pintado através do Realismo, mas, neste caso, também a partir do Simbolismo que está representado no vinho, uma referência aos cultos pagãos (Baco), mas que pode de igual forma ser visto como uma forma de escape das rotinas rurais.

José Malhoa, Festejando o São Martinho ou Os Bêbados (detalhe), óleo sobre tela, 1907. Museu José Malhoa, Caldas da Rainha.

José Malhoa, Festejando o São Martinho ou Os Bêbados (detalhe), óleo sobre tela, 1907. Museu José Malhoa, Caldas da Rainha.

José Malhoa, Festejando o São Martinho ou Os Bêbados (detalhe), óleo sobre tela, 1907. Museu José Malhoa, Caldas da Rainha.
Esta obra foi exibida duas vezes no Salão da Sociedade de Belas-Artes. A primeira em 1909 e a segunda em 1911, portanto no regime monárquico e no republicano respectivamente. Um quadro que, assim, pode ser visto como um referencial do estado estético nacional, sendo que consegue unir ambas as formas de governação nesse gosto.
Numa nota final, é importante referir que Festejando o São Martinho se relaciona com O Fado, de 1910, e ambos resultam num díptico do tal imaginário de Malhoa sobre o que eram os costumes populares da cidade e do campo à época.
Diz o ditado popular “No dia de São Martinho, vai à adega e prova o vinho”, algo que estes seis homens retratados parecem ter levado à letra.
Resta-me desejar que quem lê faça o mesmo, mas com mais moderação.