“Vincent and the Doctor” – O Monstro de Van Gogh | História da Arte na Televisão

Vem já sendo habitual vermos a História da Arte aparecer no mundo do audiovisual e sem dúvida que o pintor Vincent van Gogh é um dos que mais recorrentemente aparece, seja em filmes ou em séries. Prova disso é o décimo episódio da quinta temporada de Doctor Who, intitulado Vincent and the Doctor, considerado por muitos como o melhor episódio desta série. Nele somos levados de 2010 até 1890, de Paris até Auvers-sur-Oise, onde se encontra o pintor holandês. O artista luta e convive com um monstro e o Doctor e Amy Pond decidem ajudá-lo.

Vamos, então, conhecer um pouco melhor esse monstro que realmente tanto atormentou Van Gogh, como o prejudicou e como fez com que a sua pintura se modificasse ao longo dos anos. Um breve contar do último ano de vida do artista que nos ajuda a entender o episódio e o que para depois dele viria, havendo também espaço para falar de algumas das obras que têm destaque no episódio.

Vincent and the Doctor, Doctor Who, BBC.

Vincent and the Doctor começa num campo de trigo e leva-nos ao momento em que Van Gogh pintou o que viria a ser um dos seus últimos quadros, Campo de Trigo com Corvos. Este passa das mãos do pintor para uma sala no Musée d’Orsay, em Paris, onde integra uma exposição dedicada ao artista holandês (esta exposição, no entanto, nunca aconteceu, sendo que algumas das obras, pertencentes a outros museus, que aparecem no episódio nunca estiveram em empréstimo ao espaço francês). Aqui, tem lugar uma visita guiada na qual vão sendo relatados alguns factos sobre Van Gogh e a sua obra.

Doctor (Matt Smith) e Amy Pond (Karen Gillan) visitam esta exposição e ouvem um pouco da explicação de Dr. Black (Bill Nighy), ao mesmo tempo que vão tendo atenção ao que outros visitantes dizem e fazem no local. Até que, ao verem a obra A Igreja de Auvers, avistam um monstro numa das suas janelas. Doctor percebe assim que tem de visitar o pintor, pois é um elemento que não consta nas imagens nos livros de História da Arte, indicando que o mesmo poderia estar em perigo. Desta forma, sabendo que o quadro foi pintado entre 1 e 3 de Junho de 1890, viajam até esses dias.

Vincent and the Doctor, Doctor Who, BBC.

Referência à obra A Igreja de Auvers, óleo sobre tela, 1890, Musée d’Orsay.
Vincent and the Doctor, Doctor Who, BBC.

Chegados ao destino, Doctor e Amy começam a procurar Van Gogh (Tony Curran) e decidem desde logo ver pelos cafés. Aqui há uma referência à obra Exterior de Café, à Noite, na Place du Forum em Arles, indicando-nos que seria aqui que o artista estaria. Isto é, no entanto, errado, pois, em 1890, Van Gogh estava, como referido acima, em Auvers-sur-Oise e não em Arles.

Encontrado o pintor, Doctor tenta falar-lhe da urgência que existe para que seja pintado o quadro referente à Igreja, sem, no entanto, desvendar muito do porquê. O revelar da necessidade para que tal aconteça acaba por ter lugar um pouco mais tarde, quando o monstro se revela pela primeira vez, num ataque nocturno que envolve as três personagens. Este monstro é apenas visível aos olhos de Vincent, mas os seus estragos são notórios para todos.

Krafayls é o nome desta criatura. Pertence a um grupo que viaja pelo espaço, mas, como muitos outros, ficou perdida nesta parte. Sendo eles criaturas cruéis, não procuram quem fica para trás e então a solução dos que ficam perdidos é esperar morrer ou ser morto e pelo caminho causar estragos. O objectivo de Doctor é o de eliminar esta criatura, de modo a que a vida de Van Gogh e dos habitantes de Auvers possa voltar ao normal.

Referência à obra Exterior de Café, à Noite, na Place du Forum em Arles, óleo sobre tela, 1888, Colecção Emery Reves.
Vincent and the Doctor, Doctor Who, BBC.

Referência à obra Auto-Retrato, óleo sobre tela, 1887, Detroit Institute of Arts.
Vincent and the Doctor, Doctor Who, BBC.

Krafayls.
Vincent and the Doctor, Doctor Who, BBC.

É a partir deste ponto que podemos fazer uma abordagem mais pessoal sobre Van Gogh. Este monstro surge como uma metáfora para a doença mental, especialmente tendo em conta como era vista na época do pintor. Mesmo sendo uma coisa que só ele vê, é mostrada na série como algo que tem efeitos em todos os que o rodeiam e com a qual ele tem que viver diariamente. Tal como Krafayls, Van Gogh sente-se sozinho num mundo em que a sua vida, as suas obras e as suas atitudes eram incompreendidas pelos outros. Um ser, à frente do seu tempo, que vagueava por um mundo que não lhe pertencia e que, por isso, o fazia ter medo.

Na altura em que se desenrola o episódio, Van Gogh tinha já passado pelo seu segundo internamento, este no asilo psiquiátrico Saint-Paul-de-Mausole. Ali, deu entrada, em Maio de 1889, por vontade própria, reconhecendo aqui uma oportunidade para descansar e dar descanso aos outros, sendo que os cidadãos de Arles fizeram um pedido em conjunto para que se internasse. Este internamento durou cerca de um ano e no início do processo dizia, por carta, ao irmão Theo:

Estou pronto a desempenhar o papel de louco. embora de forma alguma tenha energia para um tal papel.

Embora não tenha sido feito nenhum diagnóstico oficial, os médicos acreditavam que Van Gogh sofria de um tipo de epilepsia causado em parte pelo consumo excessivo de álcool e café combinado com uma alimentação deficiente. De tempos a tempos, tinha ataques durante os quais sofria de graves alucinações e com propensão para a violência. Estes ataques eram de duração indeterminada e seguiam-se de momentos de apatia e sonolência. Um conjunto de sintomas podia durar até quatro semanas, tempo em que era completamente incapaz de ser produtivo.

Vincent van Gogh, Olival, óleo sobre tela, 1889, Rijksmuseum Kröller-Müller. Fonte: KrollerMuller.

Os momentos bons, e sendo que não tinha nenhuma perturbação mental tão grave como os restantes internados, passava-os a pintar, muitas vezes no espaço exterior com a companhia de um enfermeiro. Estes momentos permitiram-lhe recuperar a sua auto-confiança e usar o trabalho como uma forma de sair das suas depressões profundas. Como não pintava durante os momentos mais perturbados, podemos dizer que a doença e o trabalho de Van Gogh foram sempre dois mundos distintos. E assim a sua pintura se faz da vida, não havendo evidências dos seus ataques nas telas que pintava. A intensidade dos quadros desta época remete-se para a fúria criadora que o assaltava durante as suas fases de lucidez. Uma forma de recuperar o tempo perdido, mas também de tentar não se resignar e não deixar que a doença levasse a melhor.

Os quadros de Van Gogh têm um carácter religioso da realidade, sendo que a ele mais nada lhe interessava representar. Tinha uma veracidade total na captação da vida humana, da natureza, algo notório nas suas telas, pois nelas não há um lado caricatural ou crítico da sociedade e dos seus tempos.

No Outono de 1889, Van Gogh sofre o seu primeiro ataque durante o trabalho fora do asilo. Este seria o mais grave que teve até então, com intenções suicidas e alucinações fortes, às quais se seguiu uma forte depressão. Ao mesmo tempo que se sentia sozinho, receava os restantes internados, o que o levou a permanecer mais tempo no quarto e, inclusive, ficar seis semanas sem sair do edifício. Quando recomeça a pintar, há uma alteração notória na sua paleta cromática, que agora é feita de cores mais escuras e baças sem contraste. A luz foi perdendo força nas suas telas. Estas novas tonalidades são uma representação do estado de espírito de Van Gogh e são visíveis no quadro A Noite Estrelada, de 1889, mas também no já mencionado A Igreja de Auvers.

É também nesta altura que Van Gogh vai começar a incorporar uma maior noção de movimento nos seus quadros, distinguindo-se duas formas principais: as curvas contínuas ondulantes e uma textura complexa de linhas definidas, aos zig-zag e tracejadas. Estes dois elementos são característicos de um estilo de pintura que revolve em comoção, tensão e intensidade e que podemos ver em Retrato do Artista, de 1889, e, tal como as novas tonalidades, podemos também observar na obra que leva Doctor e Amy a visitar o pintor.

Vincent van Gogh, A Noite Estrelada, óleo sobre tela, 1889, MoMA. Fonte: MoMA.

Vincent van Gogh, Retrato do Artista, óleo sobre tela, 1889, Musée d’Orsay. Fonte: Muséed’Orsay.

No início de 1890, a sua vida estava repleta de eventos memoráveis: o nascimento do seu sobrinho-afilhado, filho de Theo; pela primeira vez foi mencionado num artigo de uma revista de arte; estava representado na exposição “Les XX” do Grupo de Bruxelas; iria também participar na nova exposição dos “Independentes”; recebeu a notícia de que Anna Boch, irmã do poeta Eugène Boch, havia comprado o seu quadro A Vinha Vermelha (referido muitas vezes como a sua única venda em vida, o que não é verdade). Porém, estes acontecimentos tiveram uma carga demasiado forte em Van Gogh e culminaram num novo ataque. O mesmo teve a duração de dois meses e, quando recuperou, fez com Vincent sentisse que nunca ia recuperar e que, assim, estava preso no asilo. Por esse motivo, escreveu ao irmão a dizer que queria dar por terminado o internamento.

Depois de visitar a família em Paris, segue, em Maio de 1890, para Auvers-sur-Oise, ficando aos cuidados do médico Dr. Gachet. Assim que se instala na pensão Ravoux, começa a pintar e a abordar os motivos que lhe eram apresentados neste novo local.
Pintar é não só a terapia de Van Gogh como também é vida. A obsessão com o trabalho é o que lhe permite esquecer-se da sua doença durante as semanas que passa em Auvers.

A Igreja de Auvers foi uma das mais de oitenta telas que Van Gogh pintou durante os setenta dias que ali passou e destaca-se da restante temática que o artista trabalhou em Auvers, pois estava sobretudo dedicado a retratar as pessoas que habitavam na vila. O edifício é pintado de forma rígida e numa quase união com a natureza. O azul do interior escuro do edifício é semelhante à cor do céu, tal como a luz se mostra equivalente no dentro e fora. O caminho que surge em primeiro plano é mostrado em V e o mesmo serve para mostrar a distância que havia entre o pintor e a igreja. Essas cores e luzes, mas também o caminho, são elementos possíveis de encontrar em Campo de Trigo com Corvos.

A cor e as linhas que aqui foram referidas anteriormente aliam-se assim à composição, fazendo o trio de elementos que têm maior destaque nas obras de Van Gogh. A cor é o que dá o espírito e a vida ao que é representado; a linha cria a dinâmica da acção; a composição dá-nos um lugar para os seus sentimentos, bem como a visão do mundo através dos olhos de Van Gogh.

Vincent van Gogh, A Vinha Vermelha, óleo sobre tela, 1888, The Pushkin State Museum of Fine Arts. Fonte: PushkinMuseum.

Vincent van Gogh, A Igreja de Auvers, óleo sobre tela, 1890. Musée d’Orsay. Fonte: Muséed’Orsay.

Entre Junho e Julho de 1890, Van Gogh volta aos momentos de pura tristeza. A isto deve-se o facto do seu sobrinho-afilhado estar doente e de o irmão enfrentar alguns problemas na galeria onde trabalhava, o que significava dificuldades financeiras. Van Gogh sentia-se triste pela situação da família e sentia também que era um peso para o irmão, visto que este foi o seu maior apoio e sustento. Estes motivos levam Vincent a Paris, no início de Julho de 1890. Quando volta, lida com o afastamento de Dr. Gachet que, devido a um desentendimento, o deixa de convidar para visitas. Assim, agarra-se ainda mais ao trabalho, pintando uma tela por dia e, algumas vezes, até mesmo duas.

Por esta altura, pinta então Campo de Trigo Com Corvos, obra que representa a solidão que Van Gogh sentia uma vez mais. À simplicidade da pintura, alia-se o lado complexo dos caminhos sem saída ou daqueles que continuam para lá dos limites da tela. Uma mente confusa e que se sente presa representada numa tela de dimensões incomuns na qual a perspectiva não existe e onde o céu e o trigo se atropelam infinitamente. A horizontalidade ganha e não se distingue o que está perto ou longe, as cores cingem-se quase exclusivamente às três primárias e a uma complementar, havendo um controlo da pintura.

Esta é muitas vezes referida como sendo a última obra que Van Gogh pintou, mas isso não é verdade. Depois desta, o pintor criou ainda cerca de uma dúzia de telas, mas nenhuma tem o grau de complexidade ou acabamento que esta apresenta. É mais correcto, portanto, dizer-se que esta é a última obra onde é notória a sua entrega total, havendo esses tais quadros posteriores que se consideram inacabados.

A vida de Van Gogh chega ao fim pouco tempo depois, a 29 de Julho de 1890, após um ferimento de bala no peito provocado por ele próprio, acontecimento que teve lugar dois dias antes.

Vincent van Gogh, Retrato do Dr. Gachet, óleo sobre tela, 1890. Fonte: Wikipedia.

Vincent van Gogh, Campo de Trigo com Corvos, óleo sobre tela, 1890, Van Gogh Museum. Fonte: Wikipedia.

Em Vincent and the Doctor, após a resolução do problema com o monstro, Doctor e Amy querem dar-lhe algum alento e decidem levá-lo até à referida exposição. Uma tentativa de mostrar que todo o esforço e paixão que investiu nas suas telas valerão a pena, tornando-se num dos pintores mais importantes da História da Arte, tendo admiradores por todo o mundo.

Doctor e Amy mostram que há sempre lugar para ajudarmos alguém a acreditar que dias melhores virão. Um acto que tem como segundo objectivo tentar manter o pintor motivado e não se alvejar. Sendo uma personagem da vida real, tal reviravolta não poderia acontecer, mas há algo que surge de novo: na pintura Doze Girassóis Numa Jarra, aparece uma pequena dedicatória para Amy. Esta, no entanto, teria de ser uma homenagem posterior, pois o quadro é de 1888, logo, dois anos antes dos acontecimentos na série. Da mesma forma, o momento em que Van Gogh é incentivado a pintar esta flor não poderia acontecer, sendo que ele já o tinha feito.

Vincent and the Doctor, Doctor Who, BBC.

Vincent and the Doctor, Doctor Who, BBC.

Referência à obra Doze Girassóis Numa Jarra, óleo sobre tela, 1888, Nueu Pinakothek.
Vincent and the Doctor, Doctor Who, BBC.

Vincent and the Doctor surge, assim, como um ponto muito importante no mundo da televisão, fazendo esta representação do que é viver com uma doença mental e do quanto a mesma afecta quem a tem, mesmo que mais ninguém a consiga perceber. Um episódio que vem também de um acontecimento pessoal do escritor Richard Curtis, cuja irmã se suicidou após vários anos a lidar com uma depressão.

Tendo ou não falhas na ligação entre as obras de Van Gogh e o espaço e tempo dos acontecimentos na série, é uma boa forma de nos deixarmos mergulhar no universo pictórico deste artista e de vermos as várias referências que são feitas às suas telas durante o episódio, seja a nível visual ou apenas falado. Será que repararam em todos?

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