O Inverno em Nove Obras Portuguesas

O Inverno chegou há pouco mais de um mês e ainda mal deu o ar da sua graça. O frio tem sido intercalado com dias em que os termómetros batem os 20ºC, não há chuva e nas terras altas a neve também não se mostra.
Sendo já habitual assinalar as estações do ano pelo proximArte, vem este artigo trazer um pouco do que nos tem faltado nesta estação: paisagens pós-chuva, o vento que fustiga quem passa na rua e a neve que cai até nos locais menos esperados.
Deixo-vos, assim, com um conjunto de nove obras de artistas portugueses dedicadas ao frio e ao Inverno, em Portugal e até em França.

1. Francisco da Silva, Paisagem/Novembro, Dezembro, óleo sobre madeira, 1731, Museu de Évora.

Fonte: MatrizNet.

Esta obra faz parte de um conjunto de seis, das quais já só restam cinco, pintados por Francisco da Silva, artista sobre o qual pouco se conhece. Esta série representa os meses do ano, agrupados dois a dois, a partir do trabalho e ofícios que estão inerentes a cada um deles. Na peça aqui mostrada vemos uma paisagem carregada de neve com árvores despidas de folhas e algumas casas. Tanto em primeiro plano como mais afastado, vemos pessoas que se ocupam de tarefas típicas: o corte da lenha, o carregamento de mercadorias com apoio a um burro, a lavagem da roupa, etc. Toda a composição é pontuada pelos mesmos tons de bege, azul e cinzento, sendo possível perceber um dia luminoso de Inverno com a claridade do céu a reflectir no lago que vemos à direita. Há apenas alguns apontamentos a vermelho, reservados para o vestuário de algumas das pessoas que habitam a tela.

Sendo esta uma obra setecentista, vemos como se insere no gosto paisagístico que se reflectia na época. Uma obra de seis que se revela no seu carácter miniaturista (não tendo a tábua mais de 33 cm de largura) na qual vemos uma pincelada solta, mas de pormenor. Um conjunto baseado na obra do gravador francês Jean Lepautre (1618-1682). Esta peça, tal como as restantes quatro, terá pertencido à colecção de D. Frei Manuel de Cenáculo Villas-Boas (1724-1814), Arcebispo de Évora, a mesma que, mais tarde, deu origem ao espólio da Biblioteca Pública de Évora. Depois de integrar a Biblioteca, foi transferida para o Museu de Évora, onde ainda hoje se encontra como parte de um conjunto conhecido como Colecção Cenáculo.

2. Rafael Bordalo Pinheiro, Janeiro, litografia colada sobre cartolina, 1874, Museu Bordalo Pinheiro.

Fonte: Museu Bordalo Pinheiro.

Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905) seguiu um percurso muito próprio dedicado às artes gráficas, cerâmica, objectos de decoração, etc. A sua obra serve quase sempre o propósito de uma crítica cultural, política e social da época em que se insere, conseguindo de igual modo mostrar um retrato fiel da sociedade de então. Consciente da força que as suas gravuras podiam alcançar através da imprensa, funda vários periódicos ao longo dos anos.

A gravura aqui em análise corresponde a esse propósito, tendo integrado o Comércio do Porto Ilustrado e também o Almanaque das Artes e Letras. Nesta litografia vemos representadas três situações inerentes a Janeiro: um homem que carrega lenha, enquanto é fustigado pelo vento; pessoas que circulam na rua num dia de chuva e vento, tornando quase ineficaz a utilização do guarda-chuva; uma família que se reúne à mesa e à fogueira para partilhar a refeição, sendo possível perceber o frio que se faz sentir devido ao encolher dos corpos e às várias camadas de roupa utilizadas. É ainda possível ver/ler a palavra “Janeiro” na parte de baixo da composição. Esta é desenhada em modo de ramos de árvore tenebrosos, os quais fazem também a moldura e a divisão dos desenhos. A nível de traço, todo ele é feito com recurso a risco, seja para contorno ou preenchimento, não havendo mancha. As linhas bem visíveis parecem quase dar textura ao papel.

3. Carlos Reis, Manhã em Clamart, óleo sobre tela, 1889-1896, Casa-Museu Dr. Anastácio Gonçalves.

Fonte: GoogleArts&Culture.

Nesta tela podemos ver um dia de Inverno que se apresenta um pouco nublado, devido aos tons acinzentados do céu, e com vestígios de chuva recente, pelas duas poças que vemos à frente, uma delas exactamente em primeiro plano. As árvores despidas são um dos indicadores de que nos encontramos num dia invernoso. A vegetação rasteira permite-nos uma boa visão para o céu, elemento que reúne a maior parte da luminosidade da peça, a qual depois se reflecte na tal poça em primeiro plano, criando mais um foco de luz. Esta, bem como outra obra presente na colecção da Casa-Museu Dr. Anastácio Gonçalves, será um estudo para uma tela final que se perdeu durante o naufrágio do vapor Saint André, que marcava o regresso a Portugal das obras apresentadas na Exposição Universal de Paris de 1900.

Com o apoio do Estado e do Rei D. Carlos, Carlos Reis (1863-1940) frequentou a Academia Parisiense, a partir de 1889. Esta obra resulta certamente de uma das viagens que fez pelo país enquanto habitante da capital francesa. Conhecido como fiel representante da paisagem (enquanto também retratista da realeza), a obra de Carlos Reis viria a tornar-se influência para as gerações de artistas que se seguiram. Seguidor da estética naturalista e da pintura ao ar-livre, são as suas transparências luminosas (como vemos na peça mencionada) que se assumem como uma das suas características mais marcantes.

4. Henrique Tavares, Bragança – Praça da Sé Com Neve, óleo sobre tela, não datado (século XX), Museu do Abade de Baçal.

Fonte: Facebook Museu do Abade de Baçal.

Fugindo um pouco às restantes obras mencionadas neste artigo, Henrique Tavares (1897-1985) apresenta-nos uma paisagem urbana, mais precisamente a Sé de Bragança. Da construção, que serve como fundo da pintura, vemos a parte cimeira correspondente à capela-mor e a torre sineira. É ainda visível o pelourinho que a assinala. À sua frente desenrola-se a actividade quotidiana dos habitantes da cidade: à direita, uma pessoa que caminha junto ao edifício já quase a sair de cena; ao centro, uma segunda pessoa que se desloca de guarda-chuva aberto e a puxar um burro que carrega alguma mercadoria. Os restantes elementos da composição são constituintes da via, como um marco de correio, um banco e três árvores despidas e rodeadas por estruturas de madeira. É uma destas árvores que assume o primeiro plano da obra, estando os restantes elementos mais afastados. A nível cromático, o pintor utilizou uma paleta de cores claras, o bege, o branco e o amarelo em detalhes, e frias, recorrendo a variados tons de azul. Sendo esta uma paisagem com neve, percebemos que a técnica utilizada para a sua incorporação, sobretudo no chão, foi o empastamento, resultando na clara noção da textura da tinta e na mistura do branco da neve com as cores das coisas onde pousa. Isto indica também que não será uma neve acabada de cair, pois já deixa entrever o restante, sendo que apenas os telhados da Sé continuam com uma camada uniforme.

Henrique Tavares dedicou-se sobretudo a representar a paisagem e a sociedade da época em que se inseria, tendo também vários trabalhos de retrato de personalidades da época. A sua ligação a Bragança dá-se na altura em que é director da Escola Industrial da cidade. Neste tempo, dedica-se à representação de paisagens com neve, como a que agora vemos, e aos tais retratos, como o de Abade de Baçal (1865-1947). Com ele trabalhou no Museu Regional de Obras de Arte, Peças Arqueológicas e Numismática, actualmente Museu do Abade de Baçal, estando especialmente dedicado à conservação de quadros.

5. Emérico Nunes, Neve Sobre o Cais (Paris), óleo sobre tela colada em cartão, 1909, Museu do Chiado – Museu Nacional de Arte Contemporânea.

Fonte: MNAC.

Emérico Nunes (1888-1968) parte para Paris em 1906, onde viria a frequentar a Academie Julien e a École de Beaux-Arts. Nesta altura, e na qual se insere a obra em análise, executa sobretudo caricaturas e paisagens, tal como a que vemos.

Esta obra caracteriza-se como sendo uma “pochade”, ou seja um tipo de esboço utilizado na pintura que capta sobretudo as cores e a atmosfera da cena, ao contrário de um croquis habitual que se foca especialmente nas linhas. É uma tela que nos permite ver as primeiras referências da geração modernista portuguesa, que chegava por estes anos a Paris, ao mesmo tempo que ainda são visíveis características tardo-impressionistas, num relembrar da estadia de Claude Monet (1840-1926) em Londres. Os tons sobretudo cinzentos e prateados manifestam-se pastosamente na horizontal, com quebras verticais a fazerem-se notar nos mastros do barco, nos arcos da ponte que nos permite identificar a cidade representada, e nas linhas de edifícios que se desenham como fundo. A neve vemo-la em primeiro plano, elemento que, ao ser em tons mais claros, confere a luminosidade à obra.

6. José de Almeida e Silva, Pinheiros, óleo sobre madeira, 1915, Museu Grão Vasco.

Fonte: Catálogo da Colecção de José de Almeida e Silva.

Nesta paisagem invernal, somos abordados por um naturalismo diferente do que é habitual, sendo que as obras desse género remetem, normalmente, para dias de sol e calor. Aqui, domina o branco da neve e o verde e castanho da vegetação. Dos pinheiros que dão título à peça conseguimos ver o início dos troncos com poucos ramos e folhagem. No meio deles, é-nos possível ver um amontoado de rochas cobertas de musgo e alguma neve. Ao longe, do centro para a esquerda, é ainda visível um bosque denso e, mais para a direita, talvez um riacho. Uma pintura de camadas que se faz entre brancos, rosa escuro (nas sombras), verdes e castanho, cores que se destacam de um céu que se apresenta um tanto ou quanto acinzentado. É notável uma melancolia trazida pelo silêncio absoluto que reina no local, conseguindo, deste modo, alcançar o que se pretende de uma pintura de paisagem: o deslumbramento pelo natural e a sua representação que culmina no despertar de sentimentos de quem observa. Uma paisagem que se assume como efémera pela passagem da neve.

José de Almeida e Silva (1864-1945) foi um artista multifacetado cuja obra abraçava uma conversa entre as estéticas realista, naturalista tardia e romântica. As suas telas mostram uma dualidade entre o interesse que nutria pela temática da História e do Património, mas também pela paisagem e pelo rural, onde se insere a obra aqui mostrada. Representava, sobretudo, a Beira Alta e os seus costumes, paisagens e figuras, sempre com uma abordagem algo sentimental que retira de si próprio. Esse sentimentalismo aparece muito nas suas obras de pintura de género, as quais estão também marcadas por um certo naturalismo. Foi esse saudosismo e sentimentalismo que lhe permitiu manter uma clientela fixa. A sua obra, ainda dispersa e desconhecida, permite construir um fiel retrato da cidade de Viseu na época, sendo ainda possível a criação de cruzamentos entre o que os restantes artistas faziam e as correntes artísticas que se exaltavam no país.

7. Armando de Figueiredo, Paisagem de Inverno, óleo sobre tela, 1917, Museu do Chiado – Museu Nacional de Arte Contemporânea.

Fonte: MatrizNet.

Mais uma paisagem campestre que se revela invernosa pelas árvores despidas do lado esquerdo da composição. A luz do céu remete-nos para a altura do crepúsculo num dia solarengo de Inverno, o qual até permitiu colocar roupa a secar no estendal, elemento esse que nos aparece em primeiro plano. As tonalidades desta obra são sobretudo claras, com o concentrar das cores mais escuras nos montes que podemos ver ao fundo e na zona de arbusto onde se juntam as árvores. Azuis, castanhos, beges e verdes que dão destaque ao branco da roupa seca. A pincelada do pintor é notória e característica do estilo da época, sendo quase palpável a textura do céu, das ervas e arbustos. No monte são também visíveis alguns pontos brancos que remetem, muito provavelmente, para habitações.

Armando de Figueiredo de Lucena (1886-1975) foi, para além de pintor, professor e historiador de arte. Está ligado a uma técnica mais intimista e bucólica, reproduzindo as gentes e os monumentos da chamada zona saloia do país, a qual divulgava o mais que podia. Conhecido, a par com Domingos Sequeira (1768-1837), como um dos mais representativos pintores do período romântico em Portugal.

8. Columbano Bordalo Pinheiro, Inverno, aguarela sobre papel, 1918, Museu do Chiado – Museu Nacional de Arte Contemporânea.

Fonte: MatrizNet.

Nesta aguarela de Columbano Bordalo Pinheiro (1857-1929) vemos uma mulher de meia idade que enverga roupa para os meses mais frios. O seu casaco volumoso, embora pintado ao de leve, aquece-lhe o pescoço com uma pele animal, provavelmente o típico arminho. Para o conjunto há ainda um chapéu de abas curtas. Estes dois elementos, juntamente com a face da mulher que se encontra virada para o seu lado direito, são os que se apresentam com mais detalhe. Para baixo dos ombros, o corpo da figura é meramente uma aguada. Os tons da aguarela são quentes, com principal destaque para o castanho escuro do chapéu e o laranja da gola. A face da mulher, num tom pálido e de bochechas rosadas, contrasta com esses elementos de vestuário.

Esta obra enquadra-se perfeitamente no estilo a que o pintor lisboeta nos habituou, sendo muito conhecido pelos seus retratos. É até possível que a mulher em questão pertencesse ao seu círculo de amigos ou familiar. Embora nesta altura, em 1918, Columbano tivesse já adoptado uma paleta mais habitual em tons escuros fortes, vemos aqui um piscar de olho às tonalidades claras que marcam a sua obra nos anos de 1880. A desmaterialização da figura, com o corpo a confundir-se com o suporte da obra, é também característico do estilo de pintura que o viria a caracterizar e que vemos, sobretudo, em pinturas de fundos escuros.

9. António Silva Lino, Nevada (Carnaxide), óleo sobre cartão, 1954, Casa-Museu Dr. Anastácio Gonçalves.

Fonte: GoogleArts&Culture.

Uma tela que retrata uma ocorrência não habitual: um nevão em Carnaxide. António Silva Lino (1911-1984), pintor sobre quem pouco se sabe, tomou-se como repórter de imagem, tendo a função de retratar tal acontecimento invulgar para que ficasse um registo para a posterioridade. A paisagem que vemos resume-se sobretudo a um campo com monte no plano de fundo. A ocupar a zona do primeiro plano, do lado direito, vemos uma árvore de folha caduca despida e o que parece ser uma cabana de madeira que talvez sirva de apoio à agricultura. A paleta cromática é pouco abrangente, resumindo-se a brancos, beges, castanhos e preto, com alguns detalhes a azul nas zonas de sombra na neve. É uma obra tipicamente oitocentista, embora ressaltem pormenores fora desse círculo, como o uso da espátula para criar os riscos a preto, criando uma estrutura espacial na composição. As pinceladas quase se sentem, principalmente as que se apresentam na neve que cobre as ervas em primeiro plano.

Sejamos ou não apreciadores do frio e da chuva que o Inverno nos traz, não deixa de ser bonito ver o que esse tempo traz às nossas paisagens, aos montes e às cidades. É, no entanto, preocupante perceber o calor que se tem feito sentir nestas últimas semanas, num tempo em que não lhe cabe aparecer, sendo que o que vemos hoje em dia nunca iria ser comparável às imagens hoje aqui apresentadas.
Que este artigo manifeste o que caracteriza os dias invernosos a aparecer, de modo a que as consequências não sejam tão gravosas como as que já se fazem sentir. Que os nossos artistas tenham também a oportunidade de representar paisagens como as de Carlos Reis, Henrique Tavares e Emérico Nunes como algo característico de uma zona e de uma estação e não como algo raro que é mesmo preciso documentar para termos a certeza que aconteceu, tal como fez António Silva Lino.

2 pensamentos sobre “O Inverno em Nove Obras Portuguesas

Deixe uma Resposta

Preencha os seus detalhes abaixo ou clique num ícone para iniciar sessão:

Logótipo da WordPress.com

Está a comentar usando a sua conta WordPress.com Terminar Sessão /  Alterar )

Facebook photo

Está a comentar usando a sua conta Facebook Terminar Sessão /  Alterar )

Connecting to %s