Euphoria e a Interpretação do Amor Outrora Pintado| História da Arte na Televisão

O quarto episódio da segunda temporada de Euphoria, intitulado You Who Cannot See, Think of Those Who Can, saiu no passado dia 31 de Janeiro e começa com uma sequência de referências de Rue (Zendaya) e Jules (Hunter Schafer) centradas no mundo artístico, dividindo-se essencialmente entre o cinema e a pintura, mas também com um breve aceno à fotografia. Entre reinterpretações de John Lennon e Yoko Ono, um momento de Titanic, outro de Brokeback Mountain e ainda de Ghost e A Branca de Neve, há três alusões que se centram em pinturas muito conhecidas: O Nascimento de Vénus, Os Amantes e Auto-Retrato como Tehuana. No presente artigo, falamos um pouco sobre estas obras e de como os seus significados podem ou não estar relacionados com a narrativa da série.
Atenção: pode conter spoilers.

Euphoria, You Who Cannot See, Think of Those Who Can. Fonte: Instagram Marcell Rév.

I don’t think you understand how much I love Jules.

– Rue (Zendaya), Euphoria S02E04.

A sequência de pinturas começa com uma afirmação de Rue (acima transcrita) e centra-se no seu amor por Jules. Logo no início, vemos O Nascimento de Vénus, obra que data de cerca de 1485 e que saiu das mãos do pintor italiano Sandro Botticelli (1445-1510), sendo o primeiro exemplar de uma pintura em tela na zona toscana. Ao contrário do que o nome indica, esta tela não representa o momento do nascimento da deusa, mas sim o da chegada à ilha de Citera, a cuja margem Vénus chega após nascer. Surge sobre uma concha, pois, tal como indica Homero em Hino a Afrodite (história na qual o pintor se baseou), ela saiu directamente da espuma das ondas do mar. Neste quadro, Vénus é representada como uma estátua antiga: a cor da pele assemelha-se à do mármore, tendo ainda o seu corpo sido contornado a preto não só para realçar esse tom, mas também para o fazer destacar do fundo; e a sua postura vai de encontro à de Venus Pudica. Ainda assim, não nos podemos esquecer que Vénus é celebrada como um símbolo do amor e da beleza, sendo que esta era, na altura, uma forma de relembrar os ideais de amor divino.

Do céu, caem rosas que, segundo uma lenda antiga, vêem o seu nascimento coincidir com o da deusa. À nossa esquerda, vemos Zéfiro, deus do vento, que carrega a brisa Aura, e juntos são quem confere o movimento aos elementos leves (cabelo e tecidos) da obra. À direita, esta uma das Horas, as divindades das estações, filhas de Zeus e Tétis, e seguindo a lógica das flores que decoram o vestido da figura podemos dizer que estamos perante Pomona, a Hora encarregue da Primavera.

Na representação desta obra na série Euphoria, apenas Vénus surge numa versão carnal na pele de Jules, sendo que as restantes três personagens são aproveitadas da própria obra de Botticelli. É uma ligação óbvia à forma como Rue vê a namorada: alguém que concentra em si toda a beleza, que traz a alegria e cor ao mundo e que faz com que tudo nasça e floresça; alguém que representa o amor e como ele deve ser: puro, simples, bonito.

Euphoria, You Who Cannot See, Think of Those Who Can.

Sandro Botticelli, O Nascimento de Vénus, têmpera sobre tela, c. 1485, Le Gallerie Degli Uffizi, Florença. Fonte: Uffizi.

Em segundo lugar, aparece Os Amantes, do artista surrealista belga René Magritte (1898-1967). Esta pintura insere-se num conjunto de obras nas quais Magritte tapa a cara/cabeça dos representados com panos. É uma forma de ocultar as personalidades de quem vemos, sendo também invocativo das figuras de véu que caracterizam muitas das pinturas flamengas do século XV. Desejos frustrados são um tema comum na obra do pintor belga. Um acto de paixão torna-se, aqui, em algo isolado e frustrante devido ao pano. Há quem interprete este quadro como sendo a incapacidade de realmente revelar a natureza dos nossos companheiros mais íntimos.
Para além disso, há ainda a evocação do efeito voyeur com que assistimos a cenas românticas em, por exemplo, séries, sendo, no entanto, uma imagem à qual não temos totalmente acesso por não vermos a cara dos intervenientes. Magritte cria aqui uma ligação ao interesse que o mundo surrealista tinhas por máscaras, disfarces e ao que é visível sob e sobre a superfície.

O branco dos véus destaca-se do cinzento azulado do fundo. Há ainda um equilíbrio cromático entre o vermelho da parede ao lado direito e o vermelho da roupa da figura feminina que se encontra à esquerda. Os véus não estão lisos, caindo em camadas que mostram algum movimento. As posições das cabeças e dos corpos revelam uma proeminência do homem sobre a mulher. São duas figuras num ambiente ambíguo e que se mostram incapazes de comunicar ou tocar verdadeiramente, com os véus que mantêm as duas figuras separadas, criando uma atmosfera de mistério. Atmosfera essa que é traduzida também pela simplicidade de uma divisão que não revela grande perspectiva, mas que, ao mesmo tempo, é mais colorida do que é costume vermos.

Sendo a sequência inicial com as personagens Rue e Jules, é fácil criar uma associação entre a relação delas e este quadro. Seguindo a história, vemos na série um casal em que a comunicação não flui da mesma forma de ambos os lados. Jules é aberta sobre como é e o que sente, mas Rue esconde quem é verdadeiramente, consome drogas às escondidas e tem uma certa dificuldade em explicar o que sente e em ser honesta. Esta diferença entre ambas tem, obviamente, alguns impactos na relação, trazendo a tal incapacidade de uma comunicação e toques verdadeiros, pois há sempre uma camada (o véu) que oculta e traz barreiras ao contacto físico e emocional.

Euphoria, You Who Cannot See, Think of Those Who Can.

René Magritte, Os Amantes, óleo sobre tela, 1928, Museum of Modern Art (cedido pela colecção de Richard S. Zeisler), Nova Iorque. Fonte: MoMA.

A última das três pinturas a aparecer nesta sequência é uma criação de Frida Kahlo (1907-1954) e dá pelo nome de Auto-Retrato como Tehuana, embora seja também muitas vezes referido como Diego no Meu Pensamento e ainda Pensando em Diego. Kahlo começou a pintar este quadro em 1940, ano em que volta a casar com Diego Rivera (1886-1957), após um breve divórcio assinado em 1939. Apesar de ser continuamente traída, Frida permanece sedenta da companhia do marido e mostra-o nesta obra ao incluir um mini-retrato dele na sua testa: ele fá-la infeliz e muitas vezes miserável, mas ela continua a pensar nele constantemente. É um amor obsessivo que aqui apresenta.

A vestimenta de Tehuana era muitas vezes sugerida por Diego, proclamando que era uma forma de Frida mostrar a sua nacionalidade mexicana tanto a nível cultural como político. Esta sugestão do marido pode surgir tanto como uma inspiração, mas também como um fardo por se fazer representar várias vezes nestes trajes como forma de lhe agradar, quando poderia até preferir usar algo distinto.
Os fios delicados que vemos sair da peça da cabeça e da coroa floral são quase um mistério no seu significado. Há quem os veja como uma forma de novo crescimento do amor de Frida e Diego, mas também quem os encare como uma mostra do declínio da saúde da pintora mexicana (que, já sendo fraca, se deteriorou ainda mais a partir de 1943), exactamente pelo seu aspecto delicado e quebradiço. Estes fios, ao alinharem-se em volta da cabeça da pintora, acabam por chamar ainda mais a atenção para o tal mini-retrato de Diego.

A paleta desta pintura centra-se em tons claros, com foco no branco, no bege e no rosa. O fundo é de um verde meio ocre que aparece um pouco mais escuro nas folhas da coroa floral. Os detalhes mais escuros estão sobretudo na cara de Frida: o cabelo, as sobrancelhas, os olhos e a figura do marido.

A associação que se pode fazer entre este quadro e a série claramente que nada tem que ver com a herança mexicana, mas apenas com o amor e obsessão que vivem as duas personagens. Tal como Frida, também Jules (que aqui encarna a pintora) tem uma paixão que não desaparece, nem mesmo com o afastamento já mencionado, e que a faz pensar nela constantemente. Tal como o casal de pintores, também o casal de adolescentes está num reinício da relação, após um término que ditou o fim da primeira temporada.
Não é que Rue trate Jules da mesma forma que Diego tratava Frida, mas simplesmente não sabe mostrar aquilo que sente e acaba por haver a percepção de que a relação é algo mais sentido do lado da primeira.

Euphoria, You Who Cannot See, Think of Those Who Can.

Frida Kahlo, Auto-Retrato como Tehuana, óleo sobre masonite, 1943, colecção Jacques e Natasha Gelman, Cidade do México. Fonte: FridaKahlo.

This may be tre greatest thing that has ever happened to me. It’s also the first time it’s happened to me. The problem is I took so many Narcos, I literally can’t feel a fuckin’ thing.

– Rue (Zendaya), Euphoria S02E04.

Tal como nos diz a transcrição acima, esta é a primeira vez que algo deste género acontece a Rue. O gostar de alguém e sentir que o amor transborda do peito ao mesmo tempo que não o consegue demonstrar realmente. Sabemos como, muitas vezes, é difícil perceber e pôr por palavras tudo o que sentimentos e se a isso juntarmos as substâncias aditivas que a personagem de Zendaya toma constantemente, a percepção do que sente sofre alterações e o que parece é que não se passa nada dentro dela e acaba a ter que fingir alguma coisa para ser minimamente credível (tal como acontece no final da cena). Havendo ainda o lado de esconder que toma tais substâncias, há um factor de omissão e de mentira que paira sobre toda a relação e que pode acabar a ser um elemento destruidor entre as duas personagens.

Esta sequência funciona como uma carta de amor aberta, na qual Rue tenta explicar por imagens e reinterpretações como vê e ama Jules, a primeira vez que o tenta fazer e sem nunca esconder as coisas como elas são. Isto no caso das referências às artes plásticas, porque quando nos focamos nas imagens cinematográficas há uma ligeira variação, a qual fica para vocês descobrirem.

Imagem de topo: Euphoria, You Who Cannot See, Think of Those Who Can. Fonte: Instagram Marcell Rév.

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