No meio cultural ucraniano são alguns os artistas sem formação que se destacaram e continuam a destacar com as suas obras de arte. Já aqui foram referidas, por exemplo, Maria Prymachenko e Kateryna Bilokur, mas o presente artigo fala-vos de Polina Ryako, uma mulher que começou a pintar quase aos 70 anos e que tem apenas uma obra, obra essa que junta muitas outras numa peça artística única: uma casa pintada de cima a baixo. Essa habitação, que serviu como terapia para a artista, situa-se, claro está, na Ucrânia, numa das zonas mais afectadas pelos bombardeamentos russos.

Fonte: Metro.style.
Pelageya Andreyevna Rayko, conhecida como Polina Rayko, nasceu em Abril de 1928 (embora o seu passaporte dite o dia 5 de Maio), em Tsyuryupinsk (renomeada para Olenshky, em 2015), na Ucrânia. A sua vida teve um pronúncio de complicação desde início.
Em 1940, foi enviada para a Alemanha, por causa da Segunda Guerra Mundial, algo que viria a recordar com grande dor por ter testemunhado o sofrimento dos prisioneiros e algumas execuções. Estes temas viriam a aparecer nas suas obras, mas com uma interpretação de luz sobre elas, tal como foi típico do trabalho de Rayko.
Volta à Ucrânia uns anos depois e, em 1950, casa com Mikolay Alekseyevich Rayko. Com ele tem dois filhos: Elena, nascida em 1951, e Sergey, nascido em 1953. No ano seguinte, em 1954, constroem uma casa de família em Olenshky e aí sobrevivem ao plantar os seus próprios frutos e vegetais e com o trabalho sazonal numa kolkhoz (quinta colectiva na União Soviética).
Os problemas familiares aconteceram como que numa sucessão de eventos. Tanto o marido como o filho abusavam do álcool, mas seria o segundo a revelar-se mais problemático: Sergey esteve preso durante três anos, após quase destruir a casa e vender parte do seu conteúdo, incluindo fios eléctricos. Pouco depois de sair em liberdade, esfaqueia a mãe com uma faca.
Em 1994, Elena morre vítima de um acidente de carro, deixando dois filhos e o marido viúvo. No ano seguinte é Mikolay, o marido, quem morre. Dois anos depois, em 1997, o filho é enviado para uma colónia, acabando por falecer em 2002 vítima de uma cirrose.

Polina Rayko. Fonte: Naïv.
É no Outono de 1998, com 69 anos, que Polina começa a pintar o interior da sua casa como forma de atenuar a dor causada por todas as amarguras da vida. Pintar para pensar e processar tudo o que lhe tinha acontecido.
Nessa altura, conseguia algum dinheiro e alimentos ao ajudar os vizinhos, mas a sua pensão mensal (no valor de 74 hryvnias, que corresponde mais ou menos a 2,25€) era gasta em tintas e pincéis. Comprava os materiais mais baratos que conseguia encontrar no mercado local, escolhendo uma tinta apta para uso exterior.
Assim, durante quase quatro anos, cobriu as paredes, os tectos e portas de sua casa com pinturas que acabariam por se estender até aos portões, vedações e porta da garagem, no exterior. Cada uma das nove divisões foi pintada, ocupando as paredes do chão ao tecto, algo que a aproxima da Arte Monumental. Quando terminou a primeira volta, começou a fazer algumas correcções nos trabalhos iniciais.
Segundo o historiador local Sergey Dyachenko, que comunicava regularmente com Polina, a artista pintava durante a noite com as persianas fechadas para que não fosse visível da rua pelos vizinhos e as lâmpadas eram a sua fonte de iluminação. Enquanto pintava, chorava e para não chorar, cantava e esta combinação permitia-lhe alcançar o tal alívio que procurava.
Na altura pensei que deveria fazer alguma coisa para me animar um pouco. E alguém tinha que decorar e pintar a casa.
– Polina Rayko

Entrada da casa de Polina Rayko. Fonte: Wikipedia.

Fonte: Metro.Style.
Não tendo formação artística nem uma fonte diária onde pudesse recolher informação (não tinha televisão nem acesso regular a revistas e jornais), criou um estilo baseado nas suas memórias e nas coisas que a rodeavam, com um pé no mundo Naïf e na Arte Bruta. Combinava a iconografia cristã com propaganda soviética e pagã e ainda com o folclore eslavo, embora não lhes dedicasse muito o seu pensamento. Não pretendia mostrar problemas sociais ou políticos, sendo que lhe interessava apenas registar a sua admiração pelo mundo que a rodeava. Inspirava-se na sua vida, em fantasias e sonhos, na contemplação da natureza, em calendários e rótulos, mostrando a sua biografia, os familiares, animais domésticos, animais exóticos (algumas vezes do imaginário fantástico), natureza e ornamentos variados.
Pintava de memória estas composições que revelam uma pincelada confiante, harmonia na escolha e junção das cores e bom sentido de ritmo, indicado pelas formas circulares que colocava no espaço, com um movimento que parece sair das paredes para se propagar no resto das divisões. Não há espaço entre pinturas e, desta forma, a casa parece um mural gigante. A Arte de Polina é optimista e algo filosófica, revelando as suas inquietações e intimidade nos motivos, características da arte Naïf e que ajudam pintores não profissionais a criar as ditas obras de arte.
A pintura Statue of Liberty/Captain (em baixo) capta bem a mistura das suas inspirações, pois tanto vemos elementos ligados à Grande Guerra Patriótica (inserida na Segunda Guerra Mundial), como a um cartão de visitas que tinha e ainda coisas que viu em sonhos, como é o caso da mulher de uniforme militar com asas em vez de mãos.


Esquerda: Estátua da Liberdade/Capitã. Fonte: Metro.Style.
Direita: auto-retrato com o marido no dia do casamento. Fonte: KitKemp’s.


Fonte: Naïv.
A sua obra atraiu atenções desde cedo e a casa tornou-se uma atracção turística. Nesta onda, Rayko começou a receber pedidos, acabando por pintar pequenas áreas de paredes, fogão e portões em casa de outras pessoas, obras pelas quais nunca cobrou. Pintou ainda pedras tumulares no cemitério local, incluindo as do marido e do filho.
Tal como essas encomendas, as visitas que começou a receber em sua casa não se tornaram uma forma de rendimento, pois não as cobrava e raramente os visitantes davam algo para que Polina conseguisse, pelo menos, comprar mais materiais.
É em 2000 que começa a ser visitada por historiadores de arte e historiadores locais que desde logo demonstraram grande interesse em proteger aquele património. Para além disso, vários turistas passavam de autocarro para ver a casa.
Em 2003, foi realizada uma curta-metragem sobre Polina, onde era possível conhecer as suas histórias e ouvir explicações sobre suas pinturas bem como as canções que acompanham algumas das suas narrativas pictóricas.
Ainda em 2003, deu-se início ao processo para a criação de um álbum dos seus trabalhos, em conjunto com o grupo criativo Kherson Centre “Totem”. Polina morre a 15 de Janeiro de 2004 sem conseguir ver o resultado final, cuja publicação (com versão ucraniana e inglesa) acontece um ano depois, em 2005, intitulado The Road to Paradise, nome que a artista deu a uma das suas pinturas.

Fonte: Sketchline.


Esquerda: Retrato do marido num barco. Fonte: Sketchline.
Direita: Animais exóticos (detalhe). Fonte: KitKemp’s.
Foi um dos seus netos que herdou a casa e o mesmo não demonstrou ter grande interesse na propriedade, querendo vendê-la o mais rapidamente possível. Acaba por vendê-la a um casal canadiano que morava na Ucrânia, mas também eles não revelaram grande preocupação com a habitação e a mesma acabou por se deteriorar, apresentando rachas nas paredes e tinta que começou a descascar. As pinturas no alpendre resumem-se a quase nada.
Desde aí, vários artistas e outros agentes culturais uniram-se para tentar salvaguardar este património: surgiram vários documentários, publicações na imprensa, criaram-se festivais naquela zona com o intuito de angariar fundos e dar a conhecer novos artistas e ainda o Fundo de Caridade Polina Rayko, criado e dirigido pelo artista visual Vycheslay Mashnytsky. Assim se espalhou a palavra e cresceu o interesse pela casa, chamando cada vez mais visitantes ucranianos e também estrangeiros.

Fonte: KitKemp’s.

As irmãs de Polina. Fonte: KitKemp’s.
A casa em si está a salvo, mas não há nada definido quanto à conservação das pinturas.
Em 2012, alguns especialistas reuniram-se com o intuito de tomar uma decisão, no entanto, não ficou claro qual o resultado dessa reunião e nada foi feito desde então.
Quatro anos mais tarde, em 2016, é discutida a possibilidade de tornar a casa num Museu de Arte Naïf, inserindo-o no Departamento Cultural da região de Kherson. Apesar do orçamento de 2017 revelar um valor para tal, o processo não avançou.
Entre 2018 e 2019, fotografias de grande escala das suas pinturas foram apresentadas na exposição A Space of One’s Own, na Pinchuk Art Centre, fazendo como que uma recriação da sua casa. A mostra remetia para o lugar da mulher na arte ucraniana, tendo em conta a especificidade sócio-política do país.
Sendo uma propriedade privada, a mesma não se encontra elegível para financiamento do estado e daí o processo longo e complicado de conseguir arrancar com uma obra de restauro. É necessário que seja registada no Registro Nacional de Património Cultural para conseguir o financiamento. Os protectores, maioritariamente vizinhos e responsáveis do distrito, da casa têm criado várias condições para quem a visita: construíram uma casa de banho e colocaram bancos e mesas no jardim, do qual também cuidam das flores e arbustos.
Antes da Covid-19, foi finalmente possível marcar reuniões com o dono da casa, Adrius Nemickas, sendo-lhe comunicado que estava pronto a pôr em marcha um plano para recuperar a casa e até para a construção de um hostel nas redondezas para facilitar a vida aos visitantes que ali pretendessem deslocar-se. O mesmo disse ter planeado contratar restauradores italianos para trabalhar nos frescos, algo que ficou em stand-by pela pandemia.
Com o governador da região de Kherson a mostrar interesse pela casa, chegando até a realizar documentos prontos a assinar que a passam de domínio privado para público, incentivando à criação de um museu, o dono acabou por aceitar doar a habitação, tendo que optar entre o Concelho Distrital de Olenshky e o Concelho Distrital de Kherson. Estas informações, datadas de Novembro de 2020, são as últimas que conseguimos apurar sobre o processo, sendo que a decisão deveria ser tomada após o fim do confinamento.

Fonte: Naïv.

Fonte: Naïv.
Embora a pandemia esteja já grandemente controlada, é sabido que a Ucrânia atravessa agora uma situação ainda mais complicada devido à sua invasão pela Rússia. A zona onde se situa a casa de Polina Rayko tem sido uma das mais fustigadas pelos bombardeamentos, mas a habitação continua, até ao dia de hoje, intacta. Resta esperar que assim continue.
Inspirados nas pinturas de Rayko, os activistas pró-Ucrânia de Kjerson utilizam uma das suas pombas como símbolo de resistência cultural durante a invasão do país pela Rússia.


Esquerda: Fonte: KitKemp’s.
Direita: Fonte: Naïv.
O facto de não ter instrução artística e de só conseguir pagar os materiais mais baratos nunca foi impedimento para Polina Rayko que via o acto de pintar como a sua forma de terapia e de aliviar a sua solidão, permitindo que se valorizasse mais. Praticou a Arte Naïf numa altura em que já não era praticada e os seus anos de maior e única actividade são os que normalmente são denominados de anos de declínio, fazendo a ligação com a idade avançada do artista.
A sua casa, a sua grande obra de arte, permite colocá-la lado a lado com outras artistas ucranianas sem formação artística como Maria Prymachenko (1909-1997), Tatyana Pat, Katerina Bilokur (1900-1961) e Anna Sobachko-Shostak (1883-1965).