Dia do Artista em Dez Auto-Retratos Portugueses

Em alguns países, o dia 24 de Agosto é assinalado como o Dia do Artista. Um dia que tem o intuito de celebrar todos os que se dedicam ao mundo das Artes, seja de que tipologia forem, e que dele fazem algo em constante movimento, tornando-o mais completo.
Assim sendo, pelo proximArte a data é aproveitada para mostrar dez auto-retratos de artistas portugueses, alguns deles que certamente conhecerão muito bem, não deixando de haver espaço para alguns não tão familiares.

1. Columbano Bordalo Pinheiro, Auto-retrato, óleo sobre madeira, 1884. Museu Nacional Grão Vasco, Viseu.

Fonte: Facebook Museu Nacional Grão Vasco.

O auto-retrato que vemos acima é o primeiro que Columbano Bordalo Pinheiro (1857-1929) alguma vez pintou, datando após da sua estadia em Paris. Esta obra, que está classificada como “Tesouro Nacional”, mostra o pintor ao centro e ligeiramente inclinado para o lado direito da tela. A sua cabeça assume uma génese quase caricatural e anuncia o Realismo que vai marcar a sua obra; nas suas mãos podemos ver a paleta com tintas espalhadas e um pincel. O artista está no primeiro plano da composição e atrás de si vemos variados bibelôs que constroem um fundo preenchido, e que não será assim tão característico nas futuras obras do pintor. Vemos deste modo o ambiente do seu atelier, onde viria a desenvolver um estilo único indicativo de um modernismo precoce. Ao centro, nas costas de Columbano, vemos um retrato talvez ainda inacabado que pousa num cavalete. Embora haja atenção ao detalhe, o colorido é pobre e o trabalho de pincel é um tanto ou quanto rude.

2. Aurélia de Souza, Auto-retrato, óleo sobre tela, 1900. Museu Nacional de Soares dos Reis, Porto.

Fonte: Google Arts&Culture.

Este é, com toda a certeza, um dos auto-retratos mais conhecidos da História da Arte Portuguesa.
A obra da pintora luso-chilena Aurélia de Souza (1866-1922) move-se sobretudo no Naturalismo, sendo possível ver alguns traços Impressionistas e Realistas. O que representa está assente no retrato e no auto-retrato (daí não poder ficar de fora deste artigo), mas também nas naturezas-mortas, flores e cenas do quotidiano. Tendo desenvolvido um estilo muito particular, trabalhou ainda a Fotografia, meio que utilizava como rascunho para estudar as poses e a luz que queria mostrar nos seus auto-retratos.

A luz é, sem dúvida, um elemento forte da sua obra, tal como podemos ver na pintura aqui mostrada. Sobre um fundo escuro, Aurélia de Souza encara-nos de frente, olhos nos olhos. A luz, que vem sobretudo do lado direito da composição, recai na sua cara e no casaco vermelho que veste. A pintora mostra-nos um olhar severo e intenso, que se liga com os traços vincados do rosto e do casaco. É uma obra de absoluta simetria que traça o centro pela linha do cabelo, a cana do nariz, o alfinete no pescoço e a linha branca da blusa. O cabelo castanho escuro quase se confunde com o fundo pintado de forma uniforme e sem detalhes.

3. Cristiano Cruz, Auto-retrato, guache sobre cartão, 1916. Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado, Lisboa.

Fonte: Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado.

A carreira de Cristiano Cruz (1892-1951), médico veterinário de profissão, começou de forma auto-didata e viria a revelar-se curta, embora de grande importância para o panorama artístico português. É ele que, através da Caricatura e do Desenho, cria uma ruptura com o oitocentismo dominante, avançando como uma influência marcada para as camadas de artistas mais jovens, entre 1908 e 1913. 1913 é exactamente o ano em que começa a dedicar-se à pintura, aliando o Simbolismo ao Expressionismo.

O Auto-retrato que aqui vemos foi realizado no ano anterior a ser mobilizado para a Primeira Guerra Mundial, onde combateu na frente francesa até 1918 e onde viria a realizar alguns dos seus melhores trabalhos.
Nesta obra o corpo do artista assume alguma melancolia, aumentada pela posição em S e pelo cabisbaixo da cabeça. Esta posição é também uma forma de destaque perante as linhas rígidas e rectas dos outros elementos que compõem a composição, como é o caso do sofá onde se senta. O fundo a vermelho com detalhes decorativos amarelos e verdes permite que a figura do pintor, que se apresenta com um fato preto, sobressaia. A face, as mãos e os pés destacam-se pelo seu tom cinzento esbranquiçado, bem como o cabelo loiro. Na mão esquerda caída o pintor segura um espelho – o facto de se afastar da vontade/necessidade de se ver no objecto, empurra-o para um campo longe do narcisismo que está ligado ao mundo da auto-representação.

4. José de Almada Negreiros, Auto-retrato num Grupo (pintura para o café “A Brasileira” do Chiado, Lisboa), óleo sobre tela, 1925. Centro de Arte Moderna – Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa.

Fonte: Centro de Arte Moderna – Fundação Calouste Gulbenkian.

São muitos os auto-retratos presentes na obra de Almada Negreiros (1893-1970), mas este em que se insere num grupo destaca-se exactamente por essa dualidade de auto-retrato/retrato e também por ter feito parte da decoração de um dos cafés mais conhecidos do país: A Brasileira, no Chiado. Aquando a remodelação do espaço em 1924-1925, a obra decorativa ficou a cargo de vários artistas como Eduardo Viana (1881-1967), Stuart Carvalhais (1887-1961) e Almada Negreiros, para mencionar apenas alguns. Almada ficou encarregue de executar o primeiro e terceiro painéis decorativos do lado ocidental da sala, sendo um deles este Auto-retrato num Grupo.

Nesta obra podemos ver, da esquerda para a direita, Almada Negreiros, Júlia de Aguilar (bailarina e actriz espanhola), Aurora Gil (actriz) e Francisco Nazareth (cientista). Os quatro estão sentados à volta de uma mesa no próprio café.
Almada inseriu-se num grupo ao qual não pertence, algo salientado de duas formas: as restantes três figuras são representadas de cara branca pálida, enquanto o pintor assume um tom de pele normal; os três olham também para a folha que Nazareth segura, enquanto Almada, absorto de tudo, se foca num esboço que segura sobre a mesa. Tal como o próprio artista viria a dizer, esta escolha de companhia serve para reforçar a falta de amigos: “a falta de outros, de outros iguais a mim, de outros que venham ter comigo e eu com eles.”

Embora, na altura, esta e as restantes obras decorativas da Brasileira não tenham sido bem recebidas pela crítica e pelos frequentadores do espaço, permaneceram no café durante cerca de cinco décadas, fazendo dele o primeiro museu de Arte Moderna em Lisboa.

5. José Tagarro, Auto-retrato, 1929, óleo sobre cartão prensado. Museu Nacional de Soares dos Reis, Porto.

Fonte: Facebook Museu Nacional de Soares dos Reis.

José Tagarro (1902-1931) pertenceu à segunda geração modernista portuguesa. A sua carreira foi bastante curta e embora não tenha sido um dos artistas mais aclamados na época, todos lhe reconhecem o enorme talento para o Desenho. Na Pintura mexia-se aos modos do Fauvismo, mas era na Ilustração de revistas e livros que encontrava a sua principal fonte de rendimento.

Neste auto-retrato em modo duplo, e por isso inovador, o artista apresenta-se de costas para quem o vê. À direita vemos Tagarro de modo completo, digamos assim, representado até à cintura. Olha para trás e mostra a face de perfil. Na mão esquerda segura um lápis o qual usa para desenhar o segundo auto-retrato desta obra. Esse, no lado esquerdo da composição, mostra-se numa fase inicial, sendo que apenas a cabeça e os ombros aparecem de modo delineado, mostrando o talento do artista para o Desenho que contrasta com o Fauvismo presente no lado direito. Ambas as figuras funcionam como espelho e quem as vê sente que interrompeu um trabalho, porque percebemos que o artista do lado direito é quem existe e o do lado esquerdo é o que está a ser desenhado por ele.
A nível de colorido é uma obra à base da mancha e na qual os tons azuis prevalecem. O lado direito apresenta-se de forma mais densa, enquanto que o esquerdo assume uma espécie de transparência quase em modo aguarela.

6. Maria Helena Vieira da Silva, Portrait de Famille ou L’atelier, Le Couple, óleo sobre tela, 1930. Colecção Fundação Árpád Szenes-Vieira da Silva, Lisboa.

A obra que vemos acima remete para o ano em que Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992) casou com Árpád Szenes (1897-1985). Este ano de 1930, embora feliz, é um pouco conturbado, sendo que a artista perde a nacionalidade portuguesa ao casar e o marido perde a nacionalidade húngara por ser judeu, desta forma tornando o casal apátrida. Moram em Paris, onde se vão apoiar mutuamente quer no plano íntimo quer no plano artístico (algo essencial para Vieira da Silva, sendo que até ao ano anterior ainda se dedicava à escultura, a qual abandonou).

Neste retrato de família vemos Vieira da Silva em primeiro plano e a encarar-nos de frente. Em segundo plano, do lado esquerdo da composição, vemos Árpád atento à tela que pinta; os tons azuis da sua roupa quase se confundem com o azul da parede ao fundo. Atrás da artista há uma porta aberta pela qual é visível uma terceira pessoa que aparece sentada. Vieira da Silva é, sem dúvida, o ponto de foco da obra, não só por estar ao centro, mas também pelo casaco branco que veste e que parece engolir muita da luz presente no quadro.

Esta obra enquadra-se perfeitamente no modo artístico da pintora nesta época, sendo que se foca essencialmente no retrato e assume a representação espacial como a sua principal preocupação plástica, criando várias ligações entre objectos e pessoas, mas também com a inserção de aberturas como janelas e portas, esta última visível na obra em questão.

7. Maria Keil, Auto-retrato, óleo sobre tela, 1941. Biblioteca Municipal de Silves.

Fonte: Wikipedia.

Maria Keil (1914-2012) é sobretudo conhecida por grandes composições de azulejos, algumas delas das mais importantes produzidas durante o século XX, em Portugal. Mas nem só disso se fez a sua carreira, sendo multifacetada nos meios e técnicas em que trabalhava. A nível de Pintura produziu sobretudo retratos, não sendo de estranhar que tenha também pintado o seu auto-retrato.

Esta é uma das suas obras mais conhecidas, sendo um dos quadros favoritos da artista e que lhe valeu o Prémio Revelação Amadeo de Souza Cardoso, em 1941, quando o pintou. Nele vemos Maria Keil ao centro voltada a 3/4, entregando-nos directamente o lado esquerdo do corpo. Encara-nos sem medo com um olhar sério, mas de certo modo dócil. Veste um casaco vermelho escuro e uma camisa branca cujas golas segura com as mãos, formando uma espécie de coração. Do lado esquerdo da obra conseguimos ver a parte de trás de uma tela, sugerindo que a artista se encontra no seu atelier. O fundo é colorido em tons de verde, bege e castanho, permitindo que a figura da artista se destaque.

O quadro está exposto na Biblioteca Municipal de Silves a pedido da própria artista, pois foi nessa cidade que nasceu e sempre mostrou orgulho nisso. Na sala infanto-juvenil do edifício, a obra faz-se acompanhar de uma cópia da carta que Maria Keil escreveu a explicar o motivo da doação.

8. Fernando Lemos, Eu (Auto-retrato), fotografia – papel agfa, 1949. Centro de Arte Moderna – Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa.

Fonte: Centro de Arte Moderna – Fundação Calouste Gulbenkian.

Fernando Lemos (1926-2019) foi um artista multifacetado, dedicando-se à Pintura, ao Desenho, à Fotografia e até à Poesia. Na Fotografia, que é o que nos interessa para abordar a obra aqui apresentada, vai assumir a representação de uma identidade de Portugal que, no seu ponto de vista, não existia até então. Estamos na altura do Estado Novo em que tudo o que é Fotografia origina da foto-reportagem, da propaganda e dos salões fotográficos, estes com preocupações de concurso. Lemos vai utilizar a Fotografia como forma de expressão consistente, mostrando uma identidade “contra-poder” que emergia. Quis fazer o registo dessa geração a quem era comum o sentimento de liberdade, e vai fazê-lo adoptando o Surrealismo.

Este auto-retrato de 1949 data de três anos antes da mudança do artista para o Brasil, mudança essa motivada pelo aperto da polícia política em relação aos encontros destes jovens. A sua obra Surrealista será valorizada em Portugal apenas após o 25 de Abril de 1974, mas o artista jamais voltará ao seu país Natal a não ser para visitas.

Nesta fotografia há uma forte carga onírica apoiada por uma grande encenação, no sentido em que nem tudo o que nos parece é. O fumo que vemos sair da cabeça de Fernando Lemos é, na verdade, uma “cabeleira” de lã de vidro; nesse fumo conseguimos ver a lâmina de uma faca e uma carta de tarot que representa o Arcano XII do Tarot de Marselha – o Pendurado, carta essa associada ao sentido de sacrifício. Esse espírito está também presente nesta Fotografia, a qual foi realizada a partir de múltiplas exposições sobre o mesmo negativo. Outra leitura associada à carta é a de um país às avessas que condena o lado cultural que dele se desliga.
Todo o claro-escuro provém de uma luz que o próprio segura na mão esquerda, lado contrário para o qual o artista desvia o olhar, não encarando quem o vê.

9. Ana Hatherly, Auto-retrato à la Matisse, caneta de feltro e colagem sobre papel, 1971. Centro de Arte Moderna – Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa.

Fonte: Centro de Arte Moderna – Fundação Calouste Gulbenkian.

Ana Hatherly (1929-2015) movimentou-se acima de tudo no mundo da Poesia, tendo desenvolvido uma carreira paralela nas Artes Plásticas. Com um percurso artístico iniciado na década de 1960, conclui que a escrita “nunca foi senão representação: imagem” e vai criar aquilo que o Centro de Arte Moderna – Fundação Calouste Gulbenkian designa como “escrita-imagem”, centrando a sua pesquisa na caligrafia e nos signos (sinais da linguagem verbal, não confundir com Astrologia). Integra o Grupo Experimentalista Português, não se fechando nunca a correntes artísticas.

Prova disso é este Auto-retrato à la Matisse, que mostra que conhecia várias estéticas e artistas, tendo feito o mesmo, por exemplo, com Füssli.
As cores são fortes e assumem-se em manchas coloridas, não havendo a intenção de criar claro-escuro. A face da artista é vermelha, tal como o fundo da composição. No delineado da face conseguimos perceber o esboço a lápis por baixo da caneta de feltro preta, mostrando que, embora pareça algo mais simples, há sempre uma preparação por detrás da obra final.

10. Maria José Oliveira, Auto-retrato, barro cru policromado e tinta de esmalte, 1980. Centro de Arte Moderna – Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa.

Fonte: Centro de Arte Moderna – Fundação Calouste Gulbenkian.

A obra de Maria José Oliveira (n. 1943) caminha por várias técnicas artísticas, sendo-lhes comum a atenção que dá ao corpo e à natureza enquanto conceitos, modelos e suportes. Trabalha sobretudo com materiais naturais e orgânicos, como o café, a terra, ovos, resina, etc.

A peça que podem ver acima encaixa-se nos modelados que a artista faz tendo o corpo como ponto de partida e assumindo as mesmas imperfeições e irregularidades. Tal como é característico da sua obra, a paleta cromática é bastante reduzida, cingindo-se ao bege, ao azul e ao vermelho. Esse vermelho delineia os detalhes da parte que encima a peça, um coração. Maria José Oliveira recorreu ao espelho para reproduzir o seu corpo como algo sem importância e do qual não conseguimos distinguir qualquer parte. O coração é o único elemento que se mostra como é, assumindo o topo e o centro do corpo da artista.

Como puderam reparar, são vários os tipos de auto-retrato que constroem a História da Arte Portuguesa. Não só diferem ao nível do estilo artístico e do meio utilizado, mas também no tipo de retrato em si, sendo que são alguns os exemplos em que não vemos apenas o artista sozinho. Um auto-retrato não tem que ser apenas a sua imagem, pode também ser a representação de um espaço que habitem ou onde trabalhem, como no caso de Columbano Bordalo Pinheiro; um momento de trabalho em família, como nos mostra Maria Helena Vieira da Silva; e até a inserção num grupo que retrata o quão desfasados daquela situação nos encontrámos, tal como José de Almada Negreiros representou. Todos esses momentos e detalhes não são mais do que um retrato do que os artistas são; de como vêem o mundo, como no caso de Fernando Lemos; ou até de como sentem e vêem o seu corpo para além de si, como mostra Maria José Oliveira.

As possibilidades de nos auto-retratarmos são infinitas e os artistas portugueses oferecem-nos um sem fim de ideias.

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