Na madrugada de hoje, mais precisamente às 02h04, o Outono chegou. A estação em que os tons da Natureza passam a ser amarelos, laranjas, vermelhos e castanhos chega sempre com um certo conforto e vontade de fazer coisas diferentes daquelas que fizemos na Primavera e, principalmente, no Verão. As frutas no balcão da cozinha alteram-se, as comidas quentes sabem melhor e funcionam como mais uma camada de roupa, coisa essa que se vai amontoando no corpo a partir desta altura.
Com esta leitura pareceu por bem assinalar a chegada da nova estação com algumas pinturas de Aurélia de Souza, artista muito conhecida pelos seus retratos, auto-retratos e naturezas-mortas, mas que também pintou muitas paisagens, cenas de interior e momentos do quotidiano. Assim sendo, ficam com a porta aberta para receber e desfrutar do Outono com as obras de Aurélia de Souza, a maior parte delas possíveis de ver actualmente no Museu Quinta de Santiago a propósito da exposição “Do que Vejo. Aurélia de Souza”, patente até 16 de Outubro.

Aurélia de Souza, Outono (detalhe), óleo sobre tela, não datado. Colecção particular.
Foquemos, então, as frutas que aparecem e as naturezas-mortas de Aurélia de Souza (1866-1922).
A chegada do Outono coincide com a época das vindimas e, por isso, não só se dá início ao processo de produção de vinho como também as uvas passam a ter lugar cativo nas nossas cozinhas. Sejam elas brancas, vermelhas ou pretas, há para todos os gostos – menos para quem não gosta.
Em Vaso e Uvas, a artista enche uma mesa precisamente com essa variedade, combinando a fruta com alguns ramos de folhas secas e um vaso. Para além das uvas, toda a composição se apresenta em tons de castanho, mesmo a mesa e a parede de fundo que se parece confundir com alguns dos elementos que vemos. Percebemos como a pintora se dedicou pacientemente a reproduzir as uvas uma a uma, tal como deu ao vaso um brilho e detalhes comuns a estas peças de estanho. Já em relação ao fundo e à mesa, conseguimos ver que há uma pincelada mais solta, grossa e rápida, criando alguma textura extra na tela.
Esta é uma natureza-morta que se destaca das tantas que Aurélia de Souza pintou, pois vemos a conjugação de objectos com alimentos, quando normalmente a artista se dedicava às flores. Seja de que forma for, embora mal vista por quem se dedicava à pintura histórica e de grandes dimensões, este género pictórico era uma forte fonte de rendimento para quem se assumia como pintor profissional e que, no caso de Aurélia e tendo em conta a época, não fugia às coisas tradicionais que existiam em casa.
Ainda nesta vertente de naturezas-mortas fora do comum na obra da pintora, surge-nos Romãs. Este fruto é um dos mais antigos do mundo e também um dos mais apreciados durante a época outonal, mesmo com todo o trabalho necessário para se separar as sementes da casca. Nesta obra, a artista optou igualmente pelos tons de castanho, sendo que o fundo é bastante mais escuro do que a mesa que parece quase um espelho por reflectir as romãs que estão em cima. Essas romãs são-nos apresentadas de duas formas: inteiras e descascadas, sendo que nesta última versão há várias sementes espalhadas, mostrando como Aurélia de Souza não se limitou a cortar a fruta. O plano de fundo e a mesa foram trabalhados de forma mais dinâmica, ao passo que as romãs mostram todos os seus elementos e cores características de forma bastante pormenorizada.

Aurélia de Souza, Vaso e Uvas, óleo sobre tela, não datado. Câmara Municipal de Matosinhos.

Aurélia de Souza, Romãs, óleo sobre tela, 1922. Museu Municipal de Coimbra – Colecção Telo de Morais.
Mas o Outono traz-nos também a fruta que, provavelmente, mais comemos ao ar livre: as castanhas. Mesmo podendo ser preparadas por nós em casa, sabem melhor quando compradas nas ruas aos tão conhecidos vendedores. Embora em A Vendedeira de Castanhas Aurélia de Souza não represente aqueles que apenas vendem as castanhas já assadas, não deixou de pintar esta imagem tão típica da época. Na obra vemos uma senhora várias vezes pintada pela artista e que montava a sua banca e guarda-sol no exterior da Quinta da China, casa onde a pintora morava com a sua mãe e irmãs. Para além de castanhas, esta senhora vende também alguns legumes. Do seu lado direito, vemos um pequeno assador onde prepara, então, a iguaria outonal. A vendedeira ocupa também o lado direito do guarda-sol, enquanto que uma outra figura feminina preenche o lado esquerdo. As duas estão pintadas num esquema em pirâmide que nos mostra a importância da relação de intimidade entre ambas, tornando a venda de produtos secundária: temos um quadro dentro de um quadro, algo muito característico na obra da artista. Apesar de, como já mencionado, Aurélia de Souza ser conhecida sobretudo pelos seus retratos e, especialmente, auto-retratos, as feições destas duas mulheres não estão detalhadas; conseguimos perceber as suas faces e mãos, mas não vai para além disso. Percebemos que, mesmo sendo um dia de sol, já estará algum frio, pois ambas as figuras apresentam-se com mais do que uma camada de roupa. A parede representada de forma precisa e que serve de fundo apresenta-se num tom claro que contrasta com os tons mais escuros da cena que se desenrola à sua frente.
Como descrito na introdução deste artigo, o Outono é feito de amarelo, laranja, vermelho e castanho e essas são precisamente as cores que as folhas das árvores vão adquirindo até deixarem os ramos vazios. Em Outono é exactamente isso que Aurélia de Souza nos mostra. Num jardim, provavelmente o de sua casa, assume-se em primeiro plano, do lado esquerdo da composição, uma árvore da qual vemos apenas um pouco do tronco, pois foi pintada de modo bastante próximo. Desse tronco saem alguns ramos que têm as tais folhas que vão alterando a sua cor: o amarelo e o castanho são as que agora têm mais destaque, mas ainda é visível algum verde. Essas folhas ocupam o centro da tela, escondendo um pouco do que está para lá desta árvore; conseguimos, no entanto, ver por baixo delas que o arvoredo tem continuidade, tornando-se cada vez mais difuso. O céu e o chão são uma mancha clara que serve apenas de fundo, não tendo nenhum tipo de detalhe.

Aurélia de Souza, A Vendedeira de Castanhas, óleo sobre tela, não datado. Câmara Municipal de Matosinhos.

Aurélia de Souza, Outono (detalhe), óleo sobre tela, não datado. Colecção particular.
Ainda numa vivência de exterior temos Avó e Neta no Jardim, obra que tem a mãe da pintora, D. Olinda, e uma das suas sobrinhas, provavelmente Maria Feliciana, como personagens principais; ambas formam uma composição circular e estabelecem um diálogo cromático através das roupas brancas e de pequenos apontamentos a vermelho. A cadeira e banco onde se sentam permitem a estas figuras a sua integração na paisagem, sendo que os tons de madeira se interligam com as árvores que servem de fundo à cena e que criam a mancha mais escura do quadro. Embora ainda haja muito verde, conseguimos ver algum amarelo já a espreitar na folhagem e o xaile da avó leva-nos a crer que estamos perante dias mais frescos, em que mesmo com o sol sobre nós não ficamos totalmente aquecidos.
Estes momentos em família são muito comuns na obra de Aurélia de Souza, tendo ela o gosto em retratar a mãe, as cinco irmãs, as sobrinhas e ainda as filhas das pessoas que trabalhavam na Quinta da China, privilegiando as mulheres à sua volta.
Passando do exterior para o interior da Casa da pintora, continuamos nessa representação feminina familiar da artista. Sofia M. Souza Lendo à Mesa é uma das muitas telas que Aurélia pintou das suas mulheres e meninas a ler, a conversar, a escrever, a costurar ou até mesmo a dormir; seja a solo ou em grupos. Deste modo, sai da típica pintura de interiores portuguesa. Tal como em Avó e Neta no Jardim, vemos que Sofia, a personagem principal e uma das irmãs da artista, não posa para o “retrato” nem se incomoda com a presença de quem a pinta, mostrando a perfeita inserção de Aurélia no ambiente familiar da Casa, mesmo quando em modo de trabalho, não perturbando o quotidiano doméstico de quem lá habita ou passa. Esta pintura assume-se em tons mais escuros, desde o castanho dos móveis e do chão, o tom acinzentado das paredes e o azul do vestido de Sofia. Os elementos brancos colocados sobre a mesa e o cinto, também branco, que a mulher usa são, sem dúvida, os pontos luminosos do quadro, sendo que as páginas do livro parecem reflectir na cara da leitora, dando-lhe alguma luminosidade. Tal como nas restantes cenas de interior e exterior da sua família, a representada como que perde a sua identidade, pois os seus traços faciais não estão marcados com detalhada individualidade.
Sofia M. Souza lendo à mesa integra este conjunto de Outono, pois é com a chegada desta estação que ler passa a estar ainda mais presente nas nossas vidas: aproveitar um bom livro no sofá com uma manta nas pernas é tudo o que apetece fazer quando o frio chega, tornando a leitura de um livro inteiro num só dia uma possibilidade bastante real.

Aurélia de Souza, Avó e Neta no Jardim (detalhe), óleo sobre tela, não datado. Câmara Municipal de Matosinhos.

Aurélia de Souza, Sofia M. Souza Lendo à Mesa, óleo sobre tela, não datado. Câmara Municipal de Matosinhos.
Ora, para acompanhar esse livro da melhor forma e para combater o frio que se faz sentir não há nada mais adequado do que chá e, claro, Aurélia de Souza também nos leva a isso, permitindo-nos completar um círculo começado no início do artigo com coisas representadas sobre a mesa, as naturezas-mortas, embora esta obra em questão, ao contrário das anteriormente mostradas, não contenha um único elemento natural.
Sem Título [Serviço de Chá] é mais um caso de uma obra na qual a cor se sobrepõe à forma, tornando-se um elemento bastante expressivo da composição. Embora estejamos perante um jogo de formas geométricas – o rectângulo do tabuleiro, o círculo do bule e os cilindros dos restantes elementos – os objectos mostrados fazem-se valer da sua cor para se marcarem na composição. Em timbre cesariano, o bule assume a liderança do serviço e nele podemos ver reflectido um pouco da sala onde se encontra, com o que parece ser um conjunto de mesa e cadeiras e ainda uma janela de cortinas abertas que deixa entrar a luz do dia, criando assim um ponto branco no objecto. A leiteira do lado direito da composição é do mesmo tom e atrás dela vemos o que parece ser uma tentativa corrigida de a colocar, pois existe um outro delineado para a leiteira que agora se confunde com o castanho da parede de fundo. Atrás do bule e do lado esquerdo da tela, os elementos representados assumem-se já em tons mais claros com a inclusão de algumas transparências e por isso não tão chamativos ao primeiro olhar como o bule, a leiteira e o tabuleiro. Este tabuleiro faz um corte recto na composição e destaca-se das cores frias do serviço ao mesmo tempo que se relaciona com o fundo e a base sobre a qual pousa.

Aurélia de Souza, Sem Título [Serviço de Chá], óleo sobre tela, não datado. Colecção particular.
Após a apresentação destas sete obras, penso que estão reunidas todas as condições para começar o Outono da melhor forma. Está na hora dos passeios por entre as folhas amarelas que terminam num lanche com castanhas assadas para depois voltarmos a casa e nos aconchegarmos com um livro e um bom chá. O frio vem aí e estes são os primeiros passos para o aceitarmos e vivermos em comunhão com ele.
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