Em Ílhavo, existem dois espaços museológicos que nos levam a percorrer o mar nos tempos idos dos séculos XIX e XX. Falo-vos do Museu Marítimo de Ílhavo e do Navio-Museu de Santo André, dois núcleos que se dedicam a homenagear sobretudo a pesca do bacalhau e as gentes que nela participaram, sendo este um marco importante na História de Portugal até aos anos 1970.
Embarquem nesta viagem e descubram a marca que os portugueses deixaram no mundo piscatório, bem como as restantes colecções de grande importância que habitam nestes Museus.

Para vos falar do espólio do Museu Marítimo de Aveiro, pelo qual começamos esta navegação, é preciso recuar no tempo para explicar a importância da pesca do bacalhau em Portugal.
Em Portugal, somos conhecidos como parte responsável pela expansão de novos mundos, aquilo a que chamamos Descobrimentos, mas a nossa história pelo mar não se fica por aí, sendo que a nossa forte vertente piscatória, principalmente de bacalhau, é transversal a todo o território português e os feitos que nos marcaram são conhecidos mundialmente. O fim desta história acontece em 1974, aquando a última saga transatlântica do país que percorreu a Gronelândia.
Este tipo de pesca teve um enorme impacto histórico, social e económico no território e povo português, sendo que o bacalhau chegou mesmo a tornar-se um elemento da nossa identidade. Coincidindo com a época em que se descobrem os grandes cardumes da Terra Nova, a pesca do bacalhau garante a subsistência do povo, principalmente por ser um peixe de fácil conservação ao contrário dos outros que obrigavam a campanhas piscatórias mais curtas. O bacalhau era também um peixe mais barato e a sua pesca abundante garantia que muitas pessoas conseguiam ter algo na mesa.
O Estado Novo vai ser responsável por esta fomentação de pescar e consumir bacalhau, criando um programa económico de autonomia alimentar para a população.
A isto acresce ainda uma linguagem nacionalista muito centrada no ritual da bênção dos bacalhoeiros, mas também no facto de Portugal ter sido o único país que não cessou as campanhas de pesca ao bacalhau durante a Segunda Guerra Mundial, permitindo a sua subsistência durante o conflito, mas também no após directo, sendo que só aqui existia uma frota de bacalhoeiros e de dóris de linha com um só homem. Este movimento será, obviamente, heroicizado pelo regime.

Sala da Faina Maior/Capitão Francisco Marques.

Sala da Faina Maior/Capitão Francisco Marques.
Esta importância do bacalhau é exactamente o que podemos ver na primeira sala de exposição permanente do Museu Marítimo de Ílhavo: a Sala da Faina Maior/Capitão Francisco Marques. Este espaço, marcado por vestígios de uma passado recente, é dedicado à pesca do bacalhau à linha praticada por homens e navios portugueses durante os séculos XIX e XX, numa evocação e homenagem a todos os que se dedicaram a este ofício. A partir de 2002, este núcleo passou a incluir o nome do Capitão Francisco Marques (n. 1930) por ser o último capitão do Creoula, bem como director do Museu entre 1999 e 2001.
A exposição leva-nos numa viagem para a qual podemos “utilizar como transporte” uma réplica em tamanho real de um iate de pesca do bacalhau cortado pelo convés a meia-água. Esta embarcação é típica das primeiras décadas do século XX e encontra-se ao centro da sala. Enquanto a percorremos, conseguimos perceber o quão perigosas eram as campanhas de pesca, com fraco apoio lateral e sem maquinaria que facilitasse a viagem. Este iate, na realidade, navegava com o apoio do vento e da sua tripulação que seria no máximo de 25 homens, numa tentativa de não sobrecarregar o barco, mas também de deixar o máximo de espaço possível para as cerca de 200 toneladas de bacalhau que regressariam nos porões.
À esquerda desta réplica vemos os espaços que ocupam a parte sob o convés, desde a sala de refeições, a despensa, a cozinha, os quartos, etc., decorados com elementos da época que nos ajudam a transpor a nossa mente para estas viagens; já à direita da embarcação vemos toda a narrativa da viagem desde a largada do barco até ao seu regresso, acompanhada com elementos pictóricos, fotografias, documentos e objectos da época.
“A sua missão consiste em preservar a memória do trabalho no mar e promover a cultura e a identidade marítima dos portugueses (…) uma instituição dedicada a todas as comunidades costeiras e aberta aos mais diversos públicos.”
– Museu Marítimo de Ílhavo***

Sala da Faina Maior/Capitão Francisco Marques.

Sala da Faina Maior/Capitão Francisco Marques.


Sala da Faina Maior/Capitão Francisco Marques.


Sala da Faina Maior/Capitão Francisco Marques.
Seguimos agora para a Sala da Ria na qual podemos ver onze embarcações, algumas delas extintas ou em vias de extinção, típicas das fainas agromarítimas da Ria de Aveiro, sendo que parte delas foram oferecidas pela Associação de Amigos do Museu de Ílhavo. Entre barcos de maior e menor porte, podemos ver um moliceiro, o mercantel, a bateria erveira de Canelas, a chincha, a matola, entre outros, todos eles à escala real. Estes barcos da Ria revelam-se nos seus painéis e proas pintadas com uma iconografia única, colorida e com muito humor que podemos ver nos moliceiros que circulam actualmente.
A Sala das Conchas e Algas é, como o nome deixa antever, o poiso da colecção científica de malacologia e algoteca.
A colecção de conchas provém de duas partes: de uma doação contínua que, desde 1933, inúmeros ilhavenses fizeram de exemplares provenientes sobretudo de Guiné, Angola, Moçambique e Timor; e de 3565 exemplares doados em 1976 pelo conchiologista francês Pierre Delpeut. A qualidade e a quantidade destes seres presentes no espólio do Museu Marítimo de Ílhavo faz com que seja considerada pelos especialista como uma das mais relevantes colecções nacionais deste género.
Já a algoteca reflecte o entusiasmo de Américo Simões Teles, um dos fundadores do Museu, que o leva à recolha, preparação e conservação das plantas marinhas, em finais da década de 1940.

Sala da Ria.


Sala da Ria.

Sala das Conchas e Algas.


Sala das Conchas e Algas.
Já a Sala dos Mares é sobre a identidade marítima local e nacional, conceito esse que é uma das bases do Museu. Nela podemos ver diversos modelos de embarcações tradicionais, textos de etnólogos locais e regionais e ainda os saberes e instrumentos de navegação utilizados desde tempos antigos até aos nossos duas.
A Sala das Artes mostra o mar como a fonte de inspiração que é e sempre foi para os artistas portugueses, tenham eles decidido focar-se nele enquanto paisagem, trabalho ou lazer. Por entre Desenho, Pintura e Escultura conseguimos ver as diferentes tonalidades que o mar adquiriu ao longo dos anos e por cada estilo artístico, desde o Romântico ao Naturalismo e à representação mais moderna, contando com obras de Diogo de Macedo, Celestino Gomes, D. Carlos de Bragança, Cândido Teles, entre outros. É uma das colecções mais antigas do Museu, tendo sido organizada antes da inauguração, já em 1927 quando surge a primeira intenção museológica.
Contém ainda uma colecção de cerâmica e vidro que se reportam a algumas das peças mais emblemáticas da Fábrica da Vista Alegre, também ela nascida em Ílhavo.

Sala dos Mares.


Sala dos Mares.

Cândido Teles, Tríptico Arte Xávega, pintura a óleo sobre platex, 1959.

João Carlos Celestino Gomes, Nossa Senhora do Mar, desenho a lápis sobre papel, 1960.
Voltando um bocadinho atrás na história do Museu Marítimo de Ílhavo enquanto espaço, há que referir que este foi inaugurado a 8 de Agosto de 1937 como Museu Municipal de Ílhavo, ocupando um edifício com projecto do arquitecto ilhavense Samuel Quininha. Uns anos mais tarde, a 20 de Setembro de 1980, evolui para Museu Marítimo e Regional de Ílhavo. Fruto da gestação de um grupo de ilhavenses, do qual fazia parte o já mencionado Américo Teles Simões, assume uma vocação etnográfica e regional.
Pertencente à Câmara Municipal de Ílhavo e à Rede Portuguesa de Museus, hoje em dia vê o seu edifício mais modernizado após uma renovação e ampliação levada a cabo pelo gabinete ARX, Lda., dos irmãos Nuno e José Mateus, em 2001. Esta alteração da carapaça exterior e estrutural do Museu incentivou também á redefinição programática do espaço, não esquecendo que estamos perante colecções compostas por artefactos que pedem técnicas de exposição menos convencionais e mais dinâmicas.
É também nesse ano de 2001 que passa a contar com o Navio-Museu Santo André, um antigo arrastão bacalhoeiro, como parte da sua colecção. Mas já lá vamos.
Após mais algumas renovações, é em Janeiro de 2013 que inaugura o Aquário de Bacalhaus, no qual podemos ver a espécie Gadus morhua, o Bacalhau do Atlântico e que podemos considerar o “bacalhau português” por ser aquele que pescamos e comemos há vários séculos. Estes têm origem selvagem e são provenientes da Dinamarca.
Com 3.2m de profundidade e capacidade para 120 metros cúbicos de água, distingue-se de outros aquários, pois podemos vê-lo a toda a volta e ainda da parte de cima sem interferência, sendo que é aberto. Foram também criadas peças em fibra de vidro que instalaram no aquário para simular formações rochosas, de modo a recriar o ecossistema dos bacalhaus. Para isso, este espaço procura ainda reunir as condições ideais tanto a nível de sal como de temperatura, a qual pode variar ao longo do ano tendo em conta os valores exteriores.
O Aquário dos Bacalhaus é uma excelente oportunidade de observar vivo o animal que muitos só conhecem no prato.
O Museu conta ainda com alguns espaços para exposições temporárias, sendo que actualmente podem ver na sua sala de exposições temporárias O Grande Norte, uma mostra que conta a última grande aventura marítima portuguesa, que desbravou caminho até à grande ilha do Ártico e despoletou avanços técnicos e tecnológicos na indústria bacalhoeira, trocas interculturais entre os portuguesas e os autóctones e trouxe pela primeira vez para Portugal as longínquas paisagens de gelo.*
Já no Espaço Oceanos, localizado ao lado do Aquário dos Bacalhaus, está patente o trabalho do artista Cássio de Lucena que junta o mar à riqueza da arquitetura portuguesa, nomeadamente o azulejo, enquanto promove a sustentabilidade e a consciência ecológica através da reutilização de resíduos urbanos**, na exposição Quem me Navega é o Mar.


Aquário dos Bacalhaus.

Aquário dos Bacalhaus.


Esquerda: detalhe da exposição O Grande Norte.
Direita: detalhe da exposição Quem me Navega é o Mar.
Depois de visitarem o Museu Marítimo de Ílhavo fica ainda a sugestão de conhecerem o Navio-Museu Santo André, ancorado num braço da Ria de Aveiro, no caminho para a Costa Nova. Este arrastão bacalhoeiro, datado de 1948, foi construído nos Países-Baixos por encomenda da Empresa da Pesca de Aveiro. Fez parte da frota portuguesa de bacalhau, acabando desmantelado a 21 de Agosto de 1997, após o surgimento de restrições à pesca de águas exteriores, o que levou ao abate de grande parte da frota, não sendo o Santo André excepção. É em Agosto de 2001 que se inicia no mundo museológico numa decisão conjunta da Câmara Municipal e de António do Lago Cerqueira, armador do navio, unidos pela vontade de mostrar aos presentes e vindouros como foram as pescarias do arrasto do bacalhau e honrar a memória de todos os seus tripulantes durante quase meio século de actividade.****
Mais recentemente, foi já alvo de uma renovação que permitiu criar um percurso expositivo maior, de forma a tornar esta uma experiência ainda mais apelativa e completa.
É possível visitar todo o navio desde a proa, a popa e os andares superiores. É como se ele estivesse apenas em descanso e os seus tripulantes de visita à família, pois parece que nunca deixou de estar habitado. Há roupas nos camarotes, as camas continuam munidas de manta e almofada, há várias fotografias espalhadas e inclusive as casas-de-banho continuam a mostrar o sabonete na beira do lavatório.
Conseguimos perceber perfeitamente como era o dia-a-dia neste barco, sendo que nas zonas de trabalho vemos acrílicos luminosos que ilustram o que se fazia em cada secção. A Casa das Máquinas, a qual também podem visitar, dá, em certas partes do navio, uma ideia do barulho que se ouviria durante as viagens. Embora o navio esteja atracado, é-nos possível ter mais-ou-menos uma noção do movimento causado pela navegação e pelas ondas através de vários elementos de segurança, como as traves colocadas sobre as mesas de refeição. Todo o navio está tão acessível que podemos sentar-nos ao leme.
O sentimento de familiaridade de espaço que parece ainda ocupado é aumentado pelos vídeos espalhados com testemunhos de marinheiros que ali trabalharam e viveram.

Navio-Museu Santo André.


Navio-Museu Santo André.


Navio-Museu Santo André.

Navio-Museu Santo André.


Navio-Museu Santo André.
A visita a estes dois Museus é fundamental para termos uma melhor noção da história da pesca do bacalhau levada a cabo pelos portugueses. São dois núcleos museológicos extremamente interactivos e didáticos e acreditem que não são só os miúdos que se divertem.
A história da pesca está intimamente ligada a todos nós e faz parte de nós enquanto povo, por isso não deixa de ser uma boa forma de usarmos algum tempo para homenagear aqueles que a construíram ao mesmo tempo que tentamos pôr-nos no lugar deles, pois esse ideal é-nos dado não só no Museu Marítimo de Ílhavo como também no Navio-Museu Santo André.
Os dois espaços estão prontos para vos receber de Terça-Feira a Sábado, das 10h às 13h e das 14h às 18h; e ao Domingo, das 14h às 18h.
A entrada no Museu Marítimo de Ílhavo tem um custo de 6€ e a do Navio-Museu Santo André de 3.50€, mas existe um bilhete combinado por 8€. As exposições temporárias são de entrada gratuita.
Para mais informações: Museu Marítimo de Ílhavo, Navio-Museu Santo André.
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Referências:
Visita ao Museu Marítimo de Ílhavo e ao Navio-Museu Santo André;
Câmara Municipal de Ílhavo – Navio-Museu Santo André;
DGPC – Museu Marítimo de Ílhavo;
Museu Marítimo de Ílhavo;
Museu Marítimo de Ílhavo – Exposição “O Grande Norte”*;
Museu Marítimo de Ílhavo – Exposição “Quem me Navega é o Mar”**;
Museu Marítimo de Ílhavo – História***;
Museu Marítimo de Ílhavo – Navio-Museu Santo André – História****;
Visit Portugal – Museu Marítimo de Ílhavo;
Visita Guiada RTP – Museu Marítimo de Ílhavo.