O Filho do Homem, de René Magritte

O Dia Internacional da Maçã celebra-se hoje, dia 21 de outubro. Todas as desculpas seriam válidas para falar de uma das maçãs mais conhecidas da História da Arte, mas já que há um dia a elas dedicado, porque não aproveitar?
O Filho do Homem, o quadro mundialmente famoso e reproduzido que analisamos hoje, integra um espólio de cerca de duas mil obras pintadas pelo artista belga René Magritte. Nele, tal como em todos os trabalhos do pintor, tudo parece real à primeira vista, mas quanto mais olhamos mais percebemos a carga teatral da obra. Posto isto, peguemos nas lupas e dissequemos todos os detalhes desta que é uma das obras mais conhecidas de Magritte.

Bill Brandt, René Magritte com a sua obra O Filho do Homem, 1964. Fonte: TimeOutFrança.

Réne Magritte (1898-1967) começou a pintar desde muito novo, tendo primeiramente percorrido as influências do Impressionismo, o qual nunca abandonaria por completo, voltando a ele durante a Segunda Guerra Mundial. Quando, em 1915, se muda de Charleroi para Bruxelas tem o primeiro encontro com os Cubistas e aqui começa a alargar os seus horizontes artísticos. Mais tarde, nos anos 1920, descobre a Arte Dada e a Pintura Surrealista, sendo que em 1924 se junta ao grupo Surrealista belga. Em 1927, muda-se para Paris onde conhece e convive com grandes nomes do Surrealismo francês, que tinham como vontade despertar a curiosidade do espectador e de desestabilizá-lo, bem como de criar associações inusitadas de palavras e objectos. Estas características influenciaram Magritte fazendo-o caminhar na descoberta do seu estilo único, decidindo apostar num Surrealismo irónico que joga com o humor e que recorre a associações inesperadas entre o real e o inconsciente.

Os artistas surrealistas desafiaram e subverteram a ordem racional da mente consciente através da representação de ideias e temas extraídos do inconsciente.

– Newall, Diana, “Compreender a Arte – Uma Valiosa Ajuda para a Interpretar e Apreciar“.

O Surrealismo é um dos estilos mais marcantes do século XX e René Magritte está no seu topo juntamente com outros artistas como Salvador Dalí (1904-1989), André Breton (1896-1966) e Paul Éluard (1895-1952). As suas obras exploram a percepção e consciência humanas a partir da sua expressão com uma pintura nítida e elementar, desprovida de complexidades formais e cromáticas. Magritte exibe o paradoxal sem o mistificar, de modo a que o seu objectivo seja imediatamente reconhecível. Prefere associações paradoxais, dando às imagens que pinta um estado de espírito absurdo num estilo naturalista que apresenta o lado mais sombrio do inconsciente. Os seus quadros, quais paisagens oníricas, parecem verdadeiros: num mundo banal, o ordinário passa a extraordinário, mas de forma maligna, pois Magritte imaginava todos com características más como assassinos em série, delinquentes que envenenam pessoas, etc.

Com este artista belga, nada é exactamente o que parece: a atmosfera está sempre carregada de presságios (…) Magritte era o príncipe da paranóia, o decano do pavor.

– Gompertz, Will, “150 Anos de Arte Moderna num Piscar de Olhos“.

René Magritte. Fonte: Pinterest.

Magritte gosta de brincar com símbolos, com o ridículo e com os limites da realidade, criando obras que misturam horror, comédia, mistério e perigo. Estas são caracterizadas pela repetição de alguns elementos como o torso feminino, o “pequenino” bourgeois, o chapéu-côco, a maçã, o castelo, a pedra, a janela, etc. Este seu gosto pela repetição e reutilização de imagens foi criticado por outros artistas.

Em 1929, devido à crise económica, volta para Bruxelas e lá concilia o trabalho de pintor com o trabalho de publicitário, algo que o vai ajudar a perceber como impregnar uma imagem na cabeça das pessoas, baseando-se na representação combinada de desejos e suposições generalizadas.
Daqui bebe também muito da sua inspiração a qual vai buscar à cultura popular: cinema, cartazes, revistas e literatura de cordel.

É nos anos 1950 que consegue alcançar o que podemos chamar de estrelato, após pintar oito painéis para o Grand Casino Knokke, na Bélgica. O seu auge enquanto artista acontece, por isso, já relativamente perto da sua morte, mas ainda assim foi o suficiente para o consagrar como um dos mais importantes pintores surrealistas.
Poucos artistas belgas alcançaram igual nível de sucesso e a carreira de Magritte reforça assim a importância que a Bélgica teve e tem na História da Arte, não ficando atrás de países vizinhos, sendo que cada um teve sucesso em alturas e estilos diferentes.

René Magritte pretendia incentivar as pessoas a olhar para o que os rodeia de outro modo, não aceitando que as coisas são o que parecem. E é exactamente isso que nos pede com a obra O Filho do Homem.

A minha pintura é feita de imagens invisíveis que não escondem nada. Elas evocam mistério e, de facto, quando alguém vê um dos meus quadros, fica apenas a perguntar-se “O que significa isto?” Não significa nada, porque o mistério também não significa nada, ele é incompreensível.

– René Magritte.

René Magritte, O Filho do Homem, óleo sobre tela, 89cmX116cm, 1964. Colecção privada. Fonte: RenéMagritte.

O Filho do Homem é o resultado de uma encomenda feita, em 1963, por Harry Torczyber, amigo e patrono do artista belga. O pretendido era que René Magritte fizesse o seu auto-retrato e daqui parte em trabalho. No entanto, em algumas cartas, o pintor revela ter um “problema de consciência” ao pintar o seu auto-retrato, algo que coincide com a sua visão crítica de que este género pictórico é uma expressão narcisista do pintor.
Após ultrapassar estas dificuldades, a obra apresenta-nos um homem que, para nós, é anónimo e que enverga uma chapéu-côco, numa imagem aparentemente simples que se revela desconcertante à medida que observamos em detalhe todos os seus pormenores.

Este homem encontra-se em frente a um muro de pedra que lhe dá pela cintura. Acima deste muro conseguimos ver o mar azul e um céu cinzento com nuvens que mostram a aproximação de uma tempestade. Ainda assim, conseguimos perceber que é de dia, pois há luz reflectida na personagem e o lado esquerdo do seu corpo aparece mais escuro, assumindo a sombra.
Apresenta-se de modo formal, vestindo um sobretudo em tom cinzento escuro, o qual completa com o já mencionado chapéu-côco também preto, uma camisa branca e uma gravata vermelha. O casaco tem três botões e apenas os dois primeiros estão abotoados. Está de frente para quem o vê e adopta uma postura rígida com os braços caídos ao lodo do corpo, mas também aqui há um pormenor interessante: o cotovelo esquerdo está na posição oposta ao suposto, ou seja conseguimos ver esse cotovelo como se o homem estivesse de costas para nós.

René Magritte, O Filho do Homem (detalhe), óleo sobre tela, 89cmX116cm, 1964. Colecção privada.

O aspecto mais marcante da obra, e o motivo que a traz aqui hoje, é a maçã verde brilhante com cinco folhas que esconde parte da cara do homem. Muitos pensam que a personagem não nos vê tal como nós não vemos a sua face, algo assumido pelo facto de o olho direito estar completamente coberto por uma das folhas da maçã, mas, mais uma vez, se se focarem no lado esquerdo do seu corpo, percebem que o olho é ligeiramente visível e que espreita por cima da maçã.
Magritte esconde assim o seu rosto, relembrando-nos das dificuldades que sentiu ao pintar o seu auto-retrato. Sobre isto vai falar algumas vezes, discutindo a vontade inerente ao ser humano de querer ver o que está para lá do visível, do alcançável. É um conflito entre os elementos presentes na obra e que são visíveis e aqueles que são invisíveis, obrigando o espectador a imaginar como é, neste caso, o rosto de Magritte.

Pelo menos esconde parte do rosto. Bom, então tens o rosto aparente, a maçã que esconde o visível mas oculto, o rosto da pessoa. É algo que acontece constantemente. Tudo o que vemos esconde outra coisa e queremos sempre ver o que está escondido por aquilo que vemos. Há um interesse pelo que está oculto e que o visível não nos mostra. Esse interesse pode assumir a forma de um sentimento bastante intenso, uma espécie de conflito, pode dizer-se, entre o visível que está oculto e o visível que está presente.

– René Magritte.

René Magritte, O Filho do Homem (detalhe), óleo sobre tela, 89cmX116cm, 1964. Colecção privada.

Analisada formalmente a obra, caminhemos agora para algumas das teorias que foram aparecendo ao longo dos anos relativamente às escolhas que Magritte fez para este quadro.

Quanto ao facto de se tratar de um auto-retrato, as opiniões dividem-se. Alguns historiadores acreditam que o homem representado não será Magritte exactamente por ele não gostar desse género de pintura e também por esta ser uma personagem que aparece recorrentemente na sua obra: se não gosta deste género pictórico, não o repetiria vezes e vezes sem conta. Esta repetição torna o homem da obra em questão em alguém normal e até anónimo, pois não é novo nem singular na obra do artista e por isso não representa apenas aquele que pinta. Ainda assim, convém referir que sempre que aparece esta personagem, o seu rosto está escondido de uma forma ou de outra. Isto mostra que o pintor belga acabava por se render várias vezes aos auto-retratos, mas neles arranjava sempre uma forma de evitar pintar o seu rosto.

Por outro lado, há também quem defenda que é mesmo o pintor, pois era muito comum ser visto a envergar uma vestimenta deste género, sendo que o chapéu-côco, que apareceu pela primeira vez na obra Devaneios de um Caminhante Solitário de 1926, se tornou a sua imagem de marca. Por isso mesmo, todos os quadros que mostram homens com esse elemento são, como já mencionado, considerados auto-retratos.
Mas também aqui há um senão, sendo que o chapéu-côco era muito utilizado na época, tendo, inclusive, sido definido por Sigmund Freud 1856-1939) como um dos símbolos sexuais masculinos. Isto é algo que complica de igual modo a leitura da obra: Magritte representa-o por ser uma imagem sua ou porque todos o usavam e por isso estamos perante todos, mas ninguém em específico?

René Magritte, Devaneios de um Caminhante Solitário, óleo sobre tela, 1926. Fonte: WikiArt.

Relativamente ao olho esquerdo visível, acredita-se também que foi desde logo intencional e o motivo para isso está relacionado com a morte da mãe do artista, que se suicidou ao saltar para o Rio Sambre, em 1912. Quando foi encontrada a camisa de noite que vestia tapava todo o seu rosto com a excepção do olho esquerdo, uma imagem que Magritte viu e que o marcou para toda a vida, sendo que outra das suas obras mais conhecidas, Os Amantes, fez menção ao mesmo episódio ao mostrar as cabeças das personagens tapadas por panos. Como Arman nos mostraria também por esta altura e até mais tarde, os auto-retratos não têm que ser apenas sobre a nossa cara, podem contar a nossa história e, sendo este detalhe realmente inspirado nesse acontecimento marcante da vida do pintor, é o que Magritte escolhe retratar nesta obra, dando-lhe sem dúvida um pouco de si, mesmo que o rosto possa não ser o seu.

Já a questão da maçã levou alguns historiadores a questionar se estaremos perante uma referência deliberada ao fruto proibido de Adão e Eva numa alusão às ideias cristãs. Ideia que se prende não só com a representação do fruto, mas também com o título O Filho do Homem que remete para “Filho de Adão”. Não se deve, no entanto, avaliar uma obra surrealista pelo seu título, pois muitos destes pintores utilizavam esse elemento como mais uma forma de desestabilizar, confundir e despistar o espectador. Magritte, por exemplo, deixava muitas vezes nas mãos dos seus colegas a escolha do título para as suas obras. Dizia: os títulos das pinturas não são explicações e as pinturas não são ilustrações dos títulos.

Esta vertente de cobrir o rosto das personagens dos seus quadros não é singular a este em questão, sendo que ainda no mesmo ano apresenta A Grande Guerra nas Fachadas, que mostra uma mulher com a cara coberta por uma flor, e ainda Homem com Chapéu-Côco o qual esconde a face com uma ave. Juntamente com O Filho do Homem, estas três obras parecem formar uma série.

Esquerda: René Magritte, Homem com Chapéu-Côco, óleo sobre tela, 1964. Colecção privada. Fonte: RenéMagritte.
Direita: René Magritte, A Grande Guerra, óleo sobre tela, 1964. Fonte: RenéMagritte.

É uma pintura de desenho realista de linhas simples e desenhos neutros que não são excessivamente reais, mas também não muito complicados, onde ressaltam os detalhes de textura e contraste luz-sombra. A maçã pode, no entanto, ser vista como não realista por não estar em nenhum elemento normal a tal objecto nem por se enquadrar na obra, que outrora seria apenas o retrato banal de alguém junto à praia.
O esquema de cores é semelhante aos das suas restantes obras, sendo por isso um dos elementos mais reconhecíveis do seu trabalho. Nesta altura, o seu estilo começava já a albergar cores extremas, algo próximo daquilo que Van Gogh (1853-1890) fazia.

A obra pertence a uma colecção privada e por isso aparece a público poucas vezes, sendo que a última vez que isso aconteceu foi já há mais de 20 anos, em 2001. Ainda assim, dificilmente alguém se esquece da sua existência, pois é amplamente reproduzida e partilhada no mundo cinematográfico, em filmes como The Thomas Crown Affair, Mr. Magorium’s Empire, 500 Days of Summer e Bronson; televisivo, em séries como Modern Family e The Simpsons; musical, em videoclipes como Astral Traveler dos Yes e Scream dos irmãos Michael e Janet Jackson; e até tecnológico/publicitário, aparecendo muitas vezes relacionado com a marca Apple.
O mundo das Artes Plásticas não podia ser excepção e o artistas Norman Rockwell cria uma homenagem ao quadro com Sr. Maçã, obra na qual substitui a cabeça da personagem por uma maçã vermelha.
Misturando o mundo artístico e o mundo televisivo, temos ainda Sponge Bob Square Pants numa das suas muitas reinterpretações de obras de arte, que opta por substituir a maçã por um ananás.

Esquerda: The Thomas Crown Affair, 1999. Fonte: CrimeReads.
Direita: The Simpsons Treehouse of Horror IV, 1993. Fonte: Pinterest.

Norman Rockwell, Sr. Maçã, 1970. Colecção privada. Fonte: TheGeneologyOfStyle.

Exemplo do cariz enigmático das obras de René Magritte, O Filho do Homem é uma obra tardia que conjuga em si muitas das características do trabalho do pintor belga. A maçã, o chapéu-côco e a cara tapadas aliam-se às infinitas questões que este auto-retrato sem rosto suscita em quem o vê, o que ajuda a construir a sua posição como uma das pinturas mais conhecidas do mundo da História da Arte. Revelar todas as verdades que se escondem atrás do que vemos representado tiraria toda a piada e diversão que existem ao experienciarmos esta peça.

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Referências:
Calvocoressi, Richard, Magritte, Phaidon, 1979;
Ferrari, Silvia, Guia de História da Arte Contemporânea – Pintura, Escultura, Arquitectura: Os Grandes Movimentos, Editorial Presença, 2008;
Gompertz, Will, 150 Anos de Arte Moderna num Piscar de Olhos, Bizâncio, 2014;
Hodge, Susan, Breve História da Arte, Editorial Gustavo Gili, 2017;
Newall, Diana, Compreender a Arte – Uma Valiosa Ajuda para a Interpretar e Apreciar, Editorial Estampa, 2008;
Art Lovo Blog – Le Fils de l’Homme de Magritte, 1964;
KazoArt Blog – The Work Under the Magnifying Glass: The Son of Man by Magritte;
René Magritte – Le Fils de l’Homme;
René Magritte.Org – The Son of Man;
Time Out França – 5 things to know about… ‘The Son of Man’ by René Magritte.

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