Bem-vindos ao artigo número 100 do proximArte. Para assinalar este marco especial, decidi trazer um conteúdo relativamente mais pessoal e que foi sugerido por uma leitora através do Instagram. Queria que o tema estivesse de alguma forma relacionada com o número 100 e por isso trago-vos as minhas obras favoritas dos últimos 100 anos, exactamente de 1922 a 2022.
Começo já por fazer um disclaimer: foi incrivelmente difícil fazer esta lista. Não por não haver obras e artistas incríveis no último século e não por eu não gostar de nada desse período – simplesmente, todas as obras em que pensei como minhas favoritas são anteriores a 1922, ou não fosse eu uma aficcionada do século XIX. Foi necessário pensar bastante e portanto o que vão ler e ver pode dividir-se de dois modos: obras específicas; e temas ou estéticas trabalhados em modo série pelos artistas, sendo dessa forma mais fácil referir-me ao conjunto do que a uma obra em particular.
Salvador Dalí, Figura en una Ventana, óleo sobre cartolina, 1925, Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofia.

Se há alguma obra neste artigo na qual eu pense constantemente como sendo uma favorita é esta pintura de Salvador Dalí (1904-1989). É daquelas paixões que aparecem sem se esperar quando visitamos exposições e museus. Obviamente que se mostra num estilo bastante diferente do que estamos habituados a ver sair das mãos do pintor espanhol e eu acho que é exactamente isso que me apaixona tanto nela: a não imediatez de reconhecer quem pintou a obra. Uma pintura de 1925 e que, portanto, foi criada quando Dalí tinha 20-21 anos, correspondendo ao seu período de formação e, por isso, à fase inicial da sua carreira, daí não ser de estranhar a evolução que teve espaço posteriormente.
De costas para nós e debruçada sobre o parapeito de uma janela vemos Anna Maria, a irmã do pintor e da qual ele fez alguns retratos com vários pontos de vista, sendo este de costas o seu predilecto. Uma obra de grande equilíbrio na paleta cromática, mas também nos espaços vazios e ocupados, sendo que a simplicidade da parede, das cortinas, do chão e também do mar e do céu permite que a figura e a linha costeira respirem, não havendo uma sobrecarga de elementos para os quais olhar – podemos, tal como Anna Maria, apreciar a calma do momento. Uma pintura invulgarmente madura e despojada com contornos definidos, com uma coloração fria e modelação plástica. Há uma mistura entre o Novecentismo, alguma inspiração do Neo-Classicismo de Jean-Auguste Dominique Ingres (1780-1867) e do Classicismo de Pablo Picasso (1881-1973).
Georgia O’Keeffe, Cow’s Skull with Calico Roses, óleo sobre tela, 1932, The Art Institute of Chicago.

Fonte: ArtInstituteofChicago.
Se este fosse um artigo sobre as minhas obras favoritas de sempre, veriam que há dois temas predominantes nas peças que integram essa minha lista: flores e morte. Esta obra de Georgia O’Keeffe (1887-1986), sobre a qual já falei num artigo dedicado à representação do Novo México na obra da pintora, mostra esses dois temas em conjunto. Com esta junção, O’Keeffe contrapõe a morte com a vida, tornando-se um pouco mais apelativa e nada soturna. Foi em 1931 que O’Keeffe se começou a dedicar a esta escolha pictórica e os ossos que pintava faziam muitas vezes parte da sua colecção pessoal.
Sarah Affonso, Ex-voto (Sereia), óleo sobre tela, 1939, colecção privada.

Fonte: FacebookFundaçãoCalousteGulbenkian.
Este é mais um dos meus achados em exposições, até porque dificilmente teria conhecimento desta obra de outra forma, pois pertence a uma colecção privada. Já por aqui falei da vida e da obra de Sarah Affonso (1899-1983), pois admiro muito o seu percurso enquanto mulher e enquanto artista, conseguindo um sem número de reinvenções. Ex-Voto (Sereia), uma das obras de Sarah Affonso que integrou a exposição de 1939 no Salão do Secretariado de Propaganda Nacional, tornou-se uma das minhas obras favoritas por se distinguir dos restantes trabalhos da artista portuguesa, ao mesmo tempo que contém também a sua habitual referência a temas que foi trabalhando como os costumes nacionais e a Virgem Maria.
A sua composição segue o modelo do ex-voto marítimo, uma referência iconográfica do Minho e presente em várias obras da artista e em distintos suportes como Pintura, Desenho e Cerâmica.
A Virgem segura na mão direita um veleiro branco de três mastros e ao colo transporta o Menino que veste vermelho e que se assemelha a uma boneca. Do lado esquerdo da composição vemos um barco mais pequeno que lança a âncora para junto da sereia – é o elemento mais sóbrio de toda a pintura e serve como ponto para conter o movimento do resto da obra e os sentimentos de quem a vê. A sereia é então a figura central do quadro. Está debaixo de água rodeada por uma rede de pesca, lançada pelo barco que a Virgem segura, que parece confundir-se com a sua cauda devido à semelhança das cores de ambos os elementos. O fundo do mar é ocupado por peixes, um polvo, uma estrela e também por um olho talvez numa menção à crença da existência de monstros marinhos que atacavam as embarcações. O topo do quadro é ocupado por uma paleta cromática leve, enquanto que a parte de baixo se faz de tons mais escuros; também na figura da sereia há esse balanço entre o seu tom de pele nua e o cabelo loiro com a cauda verde.
O que há de melhor neste quadro de devoção popular e lembrança minhota da pintora é que a sua importância de protagonista vai toda para a sereia nua e rosa, dengosa na sua cabeleira de estopa dourada, e não para a Senhora da Salvação! À graça católica sobrepõe-se a graça da arte (…).
– França, José-Augusto, “100 Quadros Portugueses no Século XX”.
As Nanas de Niki de Saint Phalle.

Niki de Saint Phalle, Black Venus, poliéster pintado, 1965-1967, Whitney Museum of American Art. Fonte: Whitney.
Sobre estas obras de Niki de Saint Phalle também já falei por aqui. Toda a obra desta artista recai sobre a força e poder feminino numa linguagem, claro está, feminista e de exaltação de todo o tipo de mulheres, sejam elas mães, filhas, grávidas, velhas ou novas, não fazendo distinção entre raças a não ser como ideia de mostrar que todos somos iguais. Mas claro que não faz isto sem um tom de crítica e estas Nanas são um excelente exemplo de tudo o que disse até aqui: são mulheres livres, coloridas de várias raças que se erguem por si, mas ao mesmo tempo os seus corpos são acentuados em atributos pelos quais as mulheres podem ser elogiadas, mas também criticadas e até violadas, não deixando de parte o facto de que a mulher serve para ser mãe. Este misto de libertação e crítica combinado com poses esvoaçantes e as cores vibrantes tornam as Nanas uma das minhas predilecções na Arte.
Os Doces de Wayne Thiebaud.


Esquerda: Wayne Thibeaud, Cakes, óleo sobre tela, 1963. National Gallery of Art. Fonte: NationalGalleryofArt.
Direita: Wayne Thiebaud, Bakery Counter, óleo sobre tela, 1962, Ebsworth Living Trust. Fonte: Flickr.
Estas pinturas de fazer crescer água na boca são uma parte tão integrante do meu conjunto de favoritos que foram tema de uma dos primeiros artigos do proximArte. Wayne Thiebaud (1920-2021) dedicou-se a outras temáticas, mas é sempre nestes bolos e gelados que penso quando me lembro deste artista. As cores são bastante apelativas aos meus sentidos e considero que tornam estas telas ainda mais chamativas. Somos transportados para uma espécie de mundo do faz-de-conta, ao mesmo tempo que olhamos para elementos que reconhecemos facilmente das vitrines das pastelarias, gelatarias e até de uma simples máquina de chicletes. As pinceladas de Thiebaud atribuem alguma textura aos doces que pinta, ad quais só nos dão vontade de mergulhar o dedo um sundae para o provar.
Marina Abramović, Rhythm 0, performance, 1974, Nápoles.

Fonte: Poetria.
Os últimos 100 anos significam uma diversidade imensa de práticas artísticas, sendo a performance uma delas. Nesse mundo, sem dúvida que o trabalho de Marina Abramović (n. 1946) é das que mais me cativa e este Rhythm 0 é das minhas obras favoritas. Esta é a última de uma série de performances individuais que a artista fez como pesquisa sobre a consciência e a inconsciência do corpo. Durante seis horas, Abramović esteve à mercê de quem visitou o Studio Morra, em Nápoles. Sobre uma mesa o público encontrava 72 objectos que podia utilizar no corpo da artista da forma que entendesse. Estes objectos eram acompanhados por uma folha de instruções na qual se podia ler:
“Instruções.
Há 72 objectos na mesa que podem usar em mim como desejarem.
Performance
Eu sou o objecto.
Durante este período eu tomo a responsabilidade total.
1974
Duração: 6 horas (20h-2h)
Studio Morra, Nápoles.”
Nessa mesa as pessoas encontravam objectos banais como uma maçã, baton, flores, perfume, uma câmara polaroid, um livro, etc.; mas havia também uma vertente perigosa nos elementos que o público podia utilizar, sendo que tinham ao seu dispor coisas como uma arma, uma bala, uma faca de cozinha, um martelo, uma serra, um machado, entre outros.
O que me fascina neste tipo de performances não é o quão loucos os artistas podem ser por se colocarem em situações destas, mas sim a loucura de quem adere e de modo maléfico, sendo que a artista chegou a ser cortada com a faca e houve até quem inserisse a bala na arma. Uma performance que podia, num extremo, levar à morte de Marina Abramović. Uma performance que pretendia aliar elementos de sedução a elementos que causam dor, algo para que a artista se preparou, embora, mais tarde, tenha revelado que, em alguns momentos, chegou a temer pela sua vida.
No início, o público estava apenas a brincar comigo. Mais tarde tornou-se cada vez mais agressivo. Foram seis horas de verdadeiro horror. Cortavam a minha roupa. Cortavam-me com uma faca próxima do pescoço, bebiam o meu sangue e depois punham o penso rápido por cima da ferida. Andavam comigo de um lado para o outro, semi-nua, deitavam-me na mesa e punham o cabo de madeira da faca entre as minhas pernas. E houve até quem colocasse a bala na arma, pôs a arma na minha mão para ver se eu premia o gatilho; a mão dela contra a minha para perceber se eu resistia. Mas lembro-me que após as seis horas e do galerista dizer que a peça tinha terminado, voltei a mim e comecei a andar por entre o público, nua, com sangue e lágrimas nos olhos; toda a gente fugiu, literalmente, pela porta fora.
– Marina Abramović, áudio-guia da exposição “The Artist is Present”, MoMA, 2010.
David Hockney, My Parents, óleo sobre tela, 1977, Tate.

Fonte: Tate.
Sou uma admiradora confessa da calma que as piscinas de David Hockney (n. 1937) trespassam, mesmo quando envolvem “splash” na água. No entanto, é obra My Parents que tenho como preferida. Água não temos, mas há muita cor aquática para onde olhar.
Atrai-me o confronto entre os tons frios da roupa da mãe, da parede, do vaso, do móvel e do tapete como os tons mais quentes do fato do pai, das cadeiras, da moldura do espelho e do chão. Mesmo o reflexo do espelho (que mostra O Baptismo de Cristo de Pierro della Francesca e um pouco da obra Invented Man Revealling Still Life, de 1975, do próprio Hockney) mostra essa dualidade cromática. Entre eles há uma explosão de cor nas tulipas que pousam sobre o móvel pintada ao centro da tela.
São precisamente as cores que mais me atraem nesta obra, mas também o quão fácil é perceber a personalidade dos pais do pintor: a mãe senta-se muito direita e olha directamente para o filho que a pinta; já o pai está curvado e completamente absorto na leitura do seu jornal, provavelmente já nem se lembrando que posa para uma fotografia. Também eles, os pais, contrastam um com o outro.
Tudo é representado de forma cuidada e delicada e o topo do quadro apenas preenchido pela parede permite aliviar a composição que se encontra mais saturada na parte inferior.
Os Big Trash Animals de Bordalo II.



Esquerda: Bordalo II, Half Rabbit, 2017, Vila Nova de Gaia.
Centro: Bordalo II, Lynx, 2019, Lisboa.
Direita: Bordalo II, Poupa, 2021, Santarém.
Há apenas dois artistas dos quais tenho uma lista de todas as obras para riscar à medida que as vejo: Caravaggio (1571-1610) e Bordalo II (n.1987), este apenas relativamente às obras presentes em território português. Sobre Bordalo II também tenho que me referir ao conjunto de obras que o artista denominou como Big Trash Animals, e não a uma peça em particular.
Penso que é cada vez mais importante que os artistas reflictam sobre os problemas mundiais actuais, sendo que eles e as suas obras são um veículo para que mais pessoas tenham conhecimento do que se passa e do que devíamos fazer individual e colectivamente. Bordalo II toma o espaço público de assalto para reflectir sobre a sociedade consumista em que vivemos, mas também sobre o excesso de produção que há de várias coisas e que muitas vezes terminam no lixo, contribuindo para os níveis de poluição do planeta.
Os Big Trash Animals são uma das categorias do trabalho do artista urbano português e para os fazer ele utiliza exactamente esse lixo, em especial o plástico. São já dezenas de animais que Bordalo II espalhou um pouco por todo o mundo, a maior parte deles estruturados em paredes, mas alguns em modo escultura, estes últimos denominados Plastics.
São, como não poderia deixar de ser, obras multi-coloridas e que nos mostram todo o tipo de animais, sendo que muitas vezes a espécie escolhida está de alguma forma relacionada ao local onde é apresentada. Estes animais colocados em paredes dividem-se em duas vertentes: os Neutral que se mostram com os plásticos pintados de modo a representar fielmente o animal; e os Half-Half que mostram metade da peça como vemos nos Neutral e outra metade com as cores originais dos plásticos utilizados. Recentemente, o artista criou alguns animais que também incluem instalação luminosa, criando um efeito distinto entre ver a peça durante o dia e durante a noite.
Os animais que outrora viram o seu espaço invadido por humanos são agora presença de grande escala no nosso dia-a-dia.
Apesar da dificuldade, confesso que este foi um bom exercício de se fazer, porque pelo caminho ajudou-me a redescobrir algumas obras e também a ter uma noção mais firme das datas daquelas que tenho como favoritas. É provável que daqui para a frente me vá lembrando de mais alguma peça que se enquadre neste espaço entre 1922 e 2022 e que faça parte do meu grupo de preferências, mas por agora ficamo-nos por aqui.
Conseguem dizer rapidamente alguma obra dos últimos 100 anos da qual gostem particularmente? São o oposto de mim e têm exactamente preferência por esse período, pela Arte Moderna e Contemporânea, do que por estilos e artistas anteriores?
Volto a dizer que não incluir aqui artistas como Andy Warhol, Picasso, Paula Rego, entre outros, não significa que não goste do seu trabalho ou não lhes dê valor, simplesmente não consigo apontar uma obra que me faça dizer que é uma preferida.
Talvez no artigo número 200 eu escreva sobre obras de 1822-1922 e aí a dificuldade será não escolher obras a mais!
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Referências:
Pedro, Maria João Gomes, Sarah Affonso: Vida e Obra – Volume I, Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, 2004;
Weyers, Frank, Salvador Dalí: Vida e Obra, Könemann, 2005;
Agenda LX – Os dias das pequenas coisas: A obra de Sarah Affonso no Museu do Chiado;
Bordalo II – About;
MoMA – Marina Abramović: The Artist Is Present – Rhythm 0;
Reina Sofia – Figura en una finestra (Figura en una ventana), Salvador Dalí;
Tate – David Hockney: My Parents, 1977;
Tate – Marina Abramovic: Rhythm 0, 1974.