No passado dia 26 de Janeiro, estreou nos cinemas portugueses o filme Amadeo, o mais recente projecto do realizador Vicente Alves do Ó e que se inspira na vida do pintor Amadeo de Souza Cardoso. Tratando-se de um filme sobre um dos mais notáveis artistas portugueses, não quis deixar passar a oportunidade de o comentar por aqui.
Antes de começar, deixo-vos dois avisos: 1) não cabe aqui a análise cinematográfica (a imagem, a luz, o guarda-roupa, etc.) da coisa, mas sim o perceber o quão bem foi ou não mostrada a vida de Amadeo, o modo como foi adaptada ao grande ecrã; 2) alerto para os spoilers que os próximos parágrafos vão conter – obviamente não sobre a vida do pintor, porque essa está há vários anos nas biografias a ele dedicadas, mas sim sobre o modo como foi construído o filme.

Fonte: Cinemas NOS.
Amadeo foca-se em três momentos específicos da vida do artista: 1916, 1911 e 1918, os quais nos aparecem exactamente por essa ordem.
1916 reporta-se a uma altura na qual Amadeo (Rafael Morais) e a esposa Lucie Pecetto (Ana Lopes) estão em Portugal há já dois anos, tendo viajado de Paris em 1914 devido ao início da Primeira Guerra Mundial, sendo obrigados a refugiar-se em Manhufe, onde casariam ainda no mesmo ano. Vemos um casal extremamente apaixonado e com uma vontade em comum: a de voltar o mais depressa possível à capital francesa, onde moraram juntos, onde têm os seus amigos, onde Amadeo deixou as suas obras e onde estas são apreciadas pela novidade que trazem ao mundo da Arte e não pela sua estranheza, modo como eram lidas por grande parte da população portuguesa, a qual integrava um país ainda muito fechado, conservador e tradicional. Ainda assim, Amadeo continuou a sua produtividade, tendo sido extremamente enérgico ao pintar, o que culmina numa fase criativa absolutamente fértil, e não baixou os braços no que toca a ver o seu trabalho exposto ao mundo. Poderia ser o contrário, sendo que passou de viver na cidade-luz que era Paris para estar então praticamente isolado do mundo. Este pulsar de energia que transpunha na sua pintura não é visível no filme.
Vemos várias referências à Corporation Nouvelle (A Nova Corporação), um grupo ao qual pertenciam Robert e Sonia Delaunay, o próprio Amadeo, Almada Negreiros, José Pacheco, Eduardo Viana, Baranoff-Rossiné, Guillaume Apollinaire e Blaise Cendrars. Um grupo que organizava exposições itinerantes e que pretendia editar álbuns artísticos acompanhados de poemas. A Souza Cardoso incentivava-o a ideia de ver a sua obra exposta um pouco por todo o mundo, ao mesmo tempo que se entusiasmava com o trabalho artístico do casal Delaunay. Em Amadeo vemos a preocupação do pintor por não ver resultados provenientes desta parceria – a promessa da exposição em Barcelona, que nunca se concretizou. Os Delaunay continuavam o seu trabalho e conseguiram algumas mostras individuais e não vendo frutos resultar da parceria, Amadeo decide seguir um caminho individual. Vemos esse corte de relações como um dos pontos mais marcantes desta parte do filme.

Amadeo. Fonte: Instagram Ukbar Films.

Lucie e Amadeo, 1910. Fonte: FlickrGulbenkian.
Ainda relativo a 1916, vemos a preparação e a inauguração da sua exposição no Porto, mais concretamente no Salão de Festas do Jardim Passos Manuel e que decorreu entre 1 e 12 de Novembro, tendo ficado na História como a primeira grande exposição modernista em Portugal. Há também referência a algumas das reacções que a mesma suscitou, embora apareçam um pouco que atenuadas no que toca às críticas negativas – não nos podemos esquecer que Amadeo de Souza Cardoso foi agredido por alguém que não compreendia as suas obras, tendo mesmo sido levado para o Hospital. As críticas, no entanto, não o afectavam, pois os anos em Paris foram uma excelente preparação para isso.
Ao longo da representação deste período de 1916, vemos um Amadeo angustiado e deprimido. Não é, no entanto, essa a imagem que muitos historiadores da arte têm do artista – alguém que lêem como efusivo, com vontade de viver e criar até mais não, inquieto e com o sonho de percorrer o mundo com a sua obra. Tal como diz a historiadora Joana Cunha Leal ao jornal Ípsilon: “Fiquei surpreendida, porque a vulnerabilidade que encontro nele no filme não encontro nas cartas que escreve aos pais, à mulher ou a outros artistas e ao tio Francisco. (…) é muito seguro de si, do percurso que está a construir. Sabe o que quer fazer e com quem”.
Vicente Alves do Ó disse já em algumas entrevistas que lhe interessou mostrar o homem e não o artista, algo que não deixa de ser válido, sendo esta a sua interpretação, mas sendo que a Arte afectava directamente o dia-a-dia e o ser de Amadeo (a vontade das exposições, o deixar os Delaunay por não avançar, o voltar a Paris por aí ser compreendido e ter o seu espaço e as suas obras), não faz sentido que a mesma apareça tão renegada para segundo ou até mesmo para terceiro plano. Há uma balança possível de concretizar mostrando o homem e o artista sem retirar um ao outro.

Amadeo. Fonte: NotíciasMagazine.

Amadeo. Fonte: Gulbenkian.
A segunda parte do filme foca-se, então, no ano de 1911, quando Amadeo e Lucie ainda moravam em Paris. As cenas recaem sobretudo numa festa em casa do casal e na qual recebem nomes como Eduardo Viana (Ricardo Barbosa) (o qual aparece também variadas vezes na primeira parte do filme), Emmerico Nunes (Hugo Nicholson), Amadeo Modigliani (João Cachola), Guillaume Apolliaire (Luciano Gomes), Marie Laurencin (Mariana Pacheco) e até Pablo Picasso (Duarte Grilo).
Sendo proveniente de uma família burguesa, Souza Cardoso tinha mais posses económicas que a maior parte dos seus colegas e por isso era normal que as noites de boémia, como aquela representada no filme, tivessem lugar em sua casa/atelier. Nesta festa, celebra-se o facto de Amadeo ter posto a Caricatura completamente de lado (algo que acontece em 1910) e ter decidido dedicar-se totalmente à Pintura. Não há registo que tal noite com tais convidados tivesse, de facto, acontecido (e sendo um filme inspirado na vida do pintor há espaço para essa divagação), mas há relatos que Amadeo não se relacionava com Picasso, embora o conhecesse.
Nesta cena de festa há, no entanto, algo a apontar: vemos Amadeo e alguns colegas a interpretar a obras Los Borrachos, de Diego Velázquez, fotografia que existe mesmo, mas que foi tirada em 1908 e que não inclui Modigliani como o filme mostra.

Amadeo. Fonte: Ípsilon.

Amadeo numa paródia com os amigos a “Los Borrachos” (Paris, França). Representa: Domingos Rebêlo, Amadeo de Sousa Cardoso, Emmérico Nunes, Manuel Bentes e José Pedro Cruz, 1908. Fonte: FlickrGulbenkian.
A terceira e última parte do filme tem, como já mencionado, acção em 1918. Começa com uma cena nas Termas das Taipas, nas quais Amadeo esteve algum tempo, após desenvolver uma doença de pele que lhe afectava as mãos e o impedia de pintar – motivo para a sua produtividade ser tão escassa nos seus últimos meses de vida. Talvez por não se saber ao certo qual esta doença, o filme não a menciona – apenas ficamos a saber que o artista teria algum problema nas mãos.
Amadeo sai, então, das Termas e refugia-se na casa de família em Espinho para tentar escapar à gripe espanhola que afectava a Europa nessa altura. Antes da cena derradeira da sua morte, vemos um homem completamente dedicado à sua família, à sua esposa. É, no entanto, uma parte extremamente longa e que nos mostra que o tom de angústia e tristeza da primeira parte culmina aqui. Vicente Alves do Ó diz, numa entrevista, que a duração desta parte é como que uma homenagem aos 70 anos em que Lucie manteve consigo grande parte das telas do seu marido, mantendo-se a ele dedicada, mesmo após a sua morte, dividindo-se entre a vontade de mostrar ao mundo o trabalho do seu marido e a de o conservar eternamente para si, pois as telas são, para ela, Amadeo. É uma visão poética, mas ainda assim não tira o longo de todo o acontecimento filmado e que se parece traduzir numa ideia de que a vida de Amadeo foi uma tragédia, quando isso não é verdade, pois Amadeo teve o reconhecimento dos seus pares (nacionais e internacionais) durante a sua vida e tem, hoje em dia, um lugar marcado na História da Arte Portuguesa, conseguido pela paixão com que vários historiadores dedicaram à sua obra e a descobrir tudo o possível sobre ela e sobre quem a criou – há mistérios ainda escondidos, certamente, o que significa que há uma investigação permanentemente em aberto a ele dedicada. Falta-lhe talvez o mesmo posto no mundo internacional, algo devido à sua morte precoce e também ao facto de Lucie manter as obras consigo durante tantas décadas (as restantes ficaram em casa da família e nos anos 1950 eram já exibidas no Museu em Amarante), tornando-o o mais bem guardado tesouro da Arte Moderna, embora componha colecções em França, na Alemanha e também nos Estados Unidos.
Meu caro António,
– última carta de Amadeo de Souza Cardoso.
Algumas notícias nossas e são as seguintes: A Gracita continua no mesmo estado não tem piorado, mas também as melhoras não são para dar descanso. Na noite passada o termómetro acusou altíssima temperatura hoje até à hora que escrevo tem baixado 39, 39 1/2º. Chamamos também o Dr. Correia Marques por se dizer que era mais despachado que o Salvador e resolveu-se de combinação com eles encontrarem-se aqui à mesma hora e conferenciarem, parecendo o outro ser da mesma opinião que o Salvador. Tranquilisaram-nos bastante não escondendo no entanto o perigo e os cuidados precisos. Dizem que os pulmões estão livres e que receiam mais complicações com os outros orgãos. A Lucia ontem não teve descanso mas hoje lá caiu na cama e lá está com febre e as características da gripe. A D. Judith não tem descanso de noite e de dia e estamos a vêr quando ela cai também. A Elena mal se arrasta, o que tem valido são as criadas da Alice. Já pensamos em arranjar alguem espécie de criada ou enfermeira porque não devemos deixar contiuar a D. Judith n’esta fadiga extenuante, mas quem? Estou a ver quando ela cae e então é que ficamos sem pessoa que dê despacho a isto. Seja o que Deus quiser! Eu ando constipadíssimo de vez em quando sinto bastante opressão no peito tenho-me atirado ao vinho do Porto como prevenção. Levaste no teu bolso aqueles papéis e bilhete postal, fazes favor de mos mandar na volta do correio? Junto remeto uma carta que veio para ti esta manhã. Não voltei ao Grande Hotel. Vi a jarrita mas estava muita gente não pude apreça-la logo que haja ocasião fá-lo-ei em teu nome.
E por ahi como se tem atravessado com essa fatalidade?
Nao sei quê que me diz que vae haver grande mudança na vida da nossa família. Será pessimismo meu oxalá.
Abraça-te teu muito dedicado irmão,
Amadeo.

Amadeo. Fonte: AIPCinema.
Os actores desempenham o seu papel de forma excelente e, a nível de imagem, é um filme belíssimo que associa muito a luz e a sombra à presença de Amadeo e com planos que emolduram o essencial da imagem e da cena que testemunhamos. Peca por, como já mencionado, praticamente erradicar a presença do “eu pintor”, mesmo com várias menções a obras de Amadeo e a elementos que nelas aparecem, como os galgos. É, sobretudo, uma carta de amor à família e às terras que viram Amadeo nascer e crescer e que ele fez questão de representar na sua pintura, tendo as suas origens como a base temática maior na sua obra. Essa abordagem não está errada e é tão válida como qualquer outra, mas parece que fica a faltar algo quando abandonámos a sala de cinema.
Vicente Alves do Ó diz-nos que para vermos e aprendermos sobre a obra de Amadeo de Souza Cardoso basta vermos um documentário ou dirigirmo-nos a um museu, o que é correcto. Mas quando vemos as suas obras, o seu lado artístico, vemos também o homem, as suas inquietações, sonhos, vontades, conhecimentos e vivências. O artista não vive sem o homem e o homem até poderia viver sem o artista, mas seria mesmo isso que Amadeo de Souza Cardoso quereria?
Deixo uma nota final para sublinhar que o filme devia estar exposto em mais salas de cinema por todo o país, sendo um pouco infeliz que as próprias pessoas de Amarante não o consigam ver na sua cidade.
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Referências:
Alfaro, Catarina, Amadeo de Souza Cardoso, Quidnovi, 2010;
França, José-Augusto, História da Arte em Portugal – O Modernismo, Editorial Presença, 2004;
Documentário Amadeo, O Último Segredo da Arte Moderna, disponível na RTP Play;
Entrevista de Vicente Alves do Ó ao canal de Yotuber TâmegaSousa.PT;
Ípsilon Público de 27 de Janeiro de 2023.
Imagem de topo: Amadeo. Fonte: Diário de Notícias.