Hoje, dia 6 de Fevereiro, assinala-se o Dia Internacional da Tolerância Zero à Mutilação Genital Feminina, dia instituído pela Organização das Nações Unidas, a 20 de Dezembro de 2012, com o intuito de erradicar esta prática.
Embora passem quase onze anos desde a sua implementação, o facto é que este é um acto que tem ainda lugar nos dias de hoje e é, por isso, importante continuar a alertar para esta questão. Deste modo, o artigo de hoje é referente a este tema, o qual é representado por Paula Rego numa série de desenhos de 2009 e que integra a colecção da Casa das Histórias Paula Rego, em Cascais.

Paula Rego, A Mãe Ama-te, da série “Mutação Genital Feminina”, água-forte e água-tinta sobre papel, 2009. Casa das Histórias Paula Rego, Cascais.
Nos últimos nove anos, foram detectados 835 casos de mutilação genital feminina em Portugal; 190 deles só em 2022, um deles realizado no país. A idade média das meninas aquando dos procedimentos, no caso dos 190 detectados em 2022, é de 6,6 anos, variando entre o primeiro ano de vida e os 34 anos.***
O Dia Internacional da Tolerância Zero à Mutilação Genital Feminina nasce, então, com o objectivo de sensibilizar a sociedade civil para a erradicação desta prática, que lesa a saúde física e psicológica de várias mulheres e meninas à volta do mundo. Por outro lado, é importante realçar que se trata de uma manifestação extrema das desigualdades entre géneros que deverá ser combatida.**
Todos os anos há um tema diferente para assinalar este dia e que tenta incentivar diferentes grupos para ajudar a eliminar esta prática. O tema de 2023 é “Parceria com Homens e Rapazes para Transformar as Normas Sociais e de Género para acabar com MGF”, sendo que o UNFPA e a UNICEF apelam à comunidade global para que se estabeleça parcerias com homens e rapazes e promova o seu envolvimento para acelerar a eliminação desta prática prejudicial e elevar as vozes das mulheres e raparigas.**

Esquerda: Paula Rego, Canção de Embalar, da série “Mutação Genital Feminina”, água-forte e água-tinta sobre papel, 2009. Casa das Histórias Paula Rego, Cascais.
Direita: Paula Rego, Noiva da Noite, da série “Mutação Genital Feminina”, água-forte e água-tinta sobre papel, 2009. Casa das Histórias Paula Rego, Cascais.
A obra de Paula Rego (1935-2022) é muito marcada por temas relacionados com o universo feminino, principalmente a práticas que deviam ser de aceitação normal e tidas como um direito básico, como o aborto (pelo qual fez uma grande campanha até ser finalmente aprovado em Portugal), e também por práticas que já não deveriam ter lugar nos dias de hoje, mas que são, infelizmente, cada vez mais comuns, como a mutilação genital feminina. As suas obras contam histórias nas quais não se incomoda de mostrar os aspectos mais negros da psique humana e por isso vemos a raiva e a indignação que sente relativamente a estes temas, dando-lhes vida através de um Realismo Bruto, assumindo-se como uma porta-voz das mulheres através das Artes Plásticas. Paula Rego olha para alguns dos temas mais duros da sociedade e tenta consciencializá-la da melhor forma que sabe: a pintar/desenhar.
A série de seis desenhos que dedicou ao tema da Mutilação Genital Feminina é, como já mencionado, de 2009 e, por isso, bastante recente no corpo da sua obra. Pertencem já a uma altura em que a artista decidiu deixar a Pintura um pouco de lado e dedicar-se essencialmente ao Desenho, dando grande primazia à linha.
“Não me lembro exactamente porque me decidi a fazê-los. Li várias coisas, e há um médica cá [em Londres] que cuida das mulheres que a procuram para dar à luz e que têm uma experiência traumática, porque estão rasgadas, então ela trata-as. Diz-se que não se deve criticar os costumes de outra cultura. Talvez não. Mas se causam semelhante dor não vejo porque não se há de dizer qualquer coisa. Mais tarde vi um documentário espantoso na BBC4 que mostrava tudo isto a acontecer numa país onde era proíbido por lei. E no entanto acontece por todo o mundo. Por força da tradição, as mães insistem que isso seja feito às filhas. Aparentemente, remonta ao tempo dos faraós. Há uma ligeira perversão da mãe que insiste em que se faça uma coisa que lhe foi feita a ela. Há aqui muita coisa de que não se fala nunca. São sempre os pais – das mães nunca se fala.”
– Paula Rego em entrevista ao The Spectator, 2009.****

Paula Rego, Circuncisão, da série “Mutação Genital Feminina”, água-forte e água-tinta sobre papel, 2009. Fonte: InternationalTimes.

Paula Rego, Suturada e Submissa, da série “Mutação Genital Feminina”, água-forte e água-tinta sobre papel, 2009. Fonte: RoyalAcademy.
Nestes desenhos, Paula Rego mostra mães que assistem ao processo, fazendo então essa ligação ao facto de serem elas próprias a procurar que as filhas sejam intervencionadas. As meninas são de raça negra e as mulheres são de raça branca, o que pode sugerir um conluio entre ambas: as primeiras representam os países africanos onde as percentagens desta prática podem atingir os 98%; as segundas sabem o que acontece nestes locais e não tomam medidas mais eficazes para o impedir.
Estas figuras que vemos seguem o típico das personagens de Paula Rego, sendo mulheres reais e não de corpo idealizado. As vestes, tanto das mulheres como das meninas, são variadas e enquadram-se em tempos contemporâneos e em tempos mais antigos, fazendo uma referência ao quão arcaico é este procedimento e ao facto de ainda se perpetuar nos tempos actuais.
Cada um dos desenhos remete para um momento especifico da prática e pelo título conseguimos perceber qual a intenção de Paula Rego com cada um deles.
A Mãe Ama-te e Canção de Embalar são a fase de tranquilidade que as mães tentam passar para as meninas nos minutos que antecedem o procedimento. A referência a “a mãe” e a “canção de embalar” marca ainda mais o facto de se tratarem apenas de crianças. É também uma forma de nos dizer que as mães fazem isto às filhas por considerarem ser o mais correcto.
Noiva da Noite estará certamente ligado ao lado patriarcal de toda a prática: o facto de ao se mutilar a menina se garantir que ela estará virgem para o casamento e que, mais tarde, nunca irá trair o seu marido. Essa questão de pureza e de fidelidade é uma das que mais define a prática da mutilação genital feminina.
A Circuncisão remete obviamente para o procedimento em si, sendo a única das seis obras em que vemos a menina efectivamente deitada na marquesa que é, nada mais que, uma mesa de madeira.
Suturada e Submissa é já o pós-intervenção e que indica exactamente como é uma menina depois de passar por isso.
Não deixa, no entanto, de haver alguma esperança, sendo que Fuga nos mostra uma mulher que carrega a sua filha para longe. Aos seus pés, vemos o que parece ser uma boneca com um laço na zona dos genitais, o que nos poderá indicar que esta menina pode ainda ter uma sexualidade prazerosa para desvendar.
Vemos ainda orifícios costurados e ainda vagina dentata – vaginas representadas com dentes e que são mencionadas em lendas populares de várias culturas e que as representam assim como forma de alertar para os perigos do sexo com mulheres desconhecidas. Ambas estas imagens apontam para o lado macabro de toda a situação.
São desenhos a preto-e-branco que se mostram sombrios, tal como o tema pede, e que incluem figuras que se assumem num misto de monstruosidade e de fantasmagórico, encarnando o suposto mal do qual a mutilação genital feminina livra as crianças que vemos deitadas em mesas ou ao colo de alguém, mostrando o quão pouco seguro e higiénica é esta intervenção.
(…) esta perturbadora série sobre a mutilação genital feminina alerta-nos para um terrível problema social, com contornos religiosos, que atinge sobretudo as meninas entre o nascimento e a puberdade. Paula Rego retrata este cruel e traumático processor cirúrgico criando as imagens terríficas que o tema exige.
– Casa das Histórias Paula Rego.*

Paula Rego, Fuga, da série “Mutação Genital Feminina”, água-forte e água-tinta sobre papel, 2009. Casa das Histórias Paula Rego, Cascais.
A prática da mutilação genital feminina constitui uma violação dos Direitos Humanos e, como referido no início deste artigo, está ainda enraizada nos dias de hoje, sobretudo em países africanos. Em Guiné-Bissau, por exemplo, este procedimento é proíbido por lei, mas não há controlo para impedir que o mesmo aconteça realmente.
Com estes seis trabalhos vemos como Paula Rego sempre pintou a partir da vida e como não se coibiu de mostrar o lado grotesco que esta tem e que somos nós, humanos, que o criamos. Uma série de 2009 e que ganha ainda mais sentido em 2012, aquando da implementação do Dia Internacional da Tolerância Zero à Mutilação Genital Feminina, serve ainda, infelizmente, como um cartaz de apelo para que esta prática seja definitivamente deixada para trás.
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Referências:
Casa das Histórias Paula Rego – Old Meets New*;
Eurocid – Dia Internacional da Tolerância Zero à Mutilação Genital Feminina 2023**;
Jornal de Notícias – Hospitais detetaram 190 casos de mutilação genital feminina***;
The Scotsman – Paula Rego interview: “I always want to turn things on their heads, to upset the established order”;
The Spectator – Power of the Pencil****.