Já sabem que o proximArte aproveita todos os dias festivos como uma desculpa para falar de Arte e, claro está, o Dia de São Valentim/Dia dos Namorados não poderia ser excepção.
A peça que estão prestes a descobrir neste artigo não é a mais namoradeira, mas mostra uma cena com alguma ternura e que encaixa nos parâmetros da sociedade da década de 1880, altura em que foi pintada. Falo-vos de O Amor na Aldeia, de Silva Porto. Uma obra para celebrar o amor que, no entanto, causou muitos desamores na altura em que foi apresentada.

Silva Porto, O Amor na Aldeia, óleo sobre tela, 1887. Depósito da Câmara Municipal do Porto no Museu Nacional de Soares dos Reis.
Corria o ano de 1873 quando António Carvalho da Silva Porto (Porto, 1850 – Lisboa, 1893) parte para Paris como pensionista de Pintura de Paisagem e Portugal mostrava ainda uma Arte sobretudo Neoclássica e Romântica. Será ele, a par com o seu colega pensionista em Pintura de História Marques de Oliveira (1853-1927), a trazer para o país a prática da pintura ao ar livre, a qual recolhem sobretudo por influência da Escola de Barbizon. Esta pintura ao ar livre faz com que os artistas se desloquem para os locais que querem pintar e os retratem directamente na tela ao invés de recolher pequenos estudos que mais tarde compõem em pintura dentro das paredes do atelier. É, então, com o regresso destes dois homens a Portugal, em 1879, que a arte portuguesa dá uma vigorosa reviravolta no que toca às técnicas, estilo e meio de concretizar as obras.
(…) estiveram em França como bolseiros da Academia Portuense, onde tiveram a oportunidade de contactar com os pintores da “escola” de Barbizon, com artistas impressionistas e com pintores do Sul de Itália, o que, inegavelmente, os marcou. Regressados, mostraram nas suas obras o culto da Natureza e fizeram a apologia do verdadeiro Naturalismo e da liberdade de expressão, pois copiavam os temas naturais, mas completavam-nos, nos seus ateliers, de acordo com o seu gosto e sensibilidade.*
O Naturalismo em Portugal alheia-se de extremismos, absorve ou neutraliza a vontade de intervenção social e de invenção de linguagem e torna-se num naturalismo sentimental à portuguesa.*
Ao regressar a Portugal, o pintor portuense assume (primeiro temporariamente e depois permanentemente) a cadeira de Pintura de Paisagem na Academia de Lisboa e desde logo põe em prática o que aprendeu nos seus anos em Paris. Leva os alunos, acompanhados pelo cavalete, para o campo como forma de os obrigar a exercitar a observação directa da Natureza e a pintá-la desse modo também.
(…) foi ele o primeiro dos nossos pintores que, frente a frente com a natureza, humildemente, pacientemente e apaixonadamente a inquiriu nos seus múltiplos aspectos, fugidios como o dia que corre e o sol que passa (…)
– Ramalho Ortigão.**

Silva Porto por Artur Benarus, século XIX. Fonte: Wikipedia.
Silva Porto produziu abundantemente e se isso, por um lado, agradava aos seus seguidores, por outro, mostrava-se numa qualidade irregular que fazia muitos questionar a autenticidade das obras – não sendo também de admirar que, desse modo, muitos tenham sido os que se aproveitaram para falsificar quadros que assinavam como Silva Porto, o que hoje em dia ainda obriga a um estudo bastante aprofundado e rigoroso para garantir se uma obra saiu mesmo das suas mãos ou se é uma mera cópia.
A sua produção abundante permitiu-lhe a presença contínua nos salões do Grupo do Leão (do qual fazia parte) e do Grémio Artístico, expondo, por vezes, mais de vinte obras e arrecadando, normalmente, montantes altos com as vendas das mesmas.
Prova da sua vasta criação são as grandes colecções das suas obras que constituem o acervo do Museu Nacional de Soares dos Reis, o Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado e também a Casa-Museu Dr. Anastácio Gonçalves.
Talvez devido a essa contínua produção e pela inovação que trouxe a Portugal, Silva Porto esteve desde logo debaixo da mira de vários críticos e escritores portugueses, não havendo 100% de concordância entre eles acerca do trabalho do pintor. Alguns, como Ramalho Ortigão (1836-1915), viam-no como um verdadeiro paisagista. O primeiro pintor português do seu tempo, dizia, sendo equiparado, por exemplo, a Jean-Baptiste Camille Corot (1796-1875), Jean-François Millet (1814-1875) e Charles-François Daubigny (1817-1878), sendo este último a preferência e grande influência do artista português. No entanto, outros foram o que o acusaram de pensar mais nas vendas do que se manter fiel a uma prática exímia que mostre a lírica naturalista com que começou, considerando que repetia a estética animalista até mais não.
Passava-se com Silva Porto o mesmo que com Anunciação se passara: uma fadiga repetitiva de temas e de soluções picturais, com, ainda por cima, uma opção, sucessivamente marcada, por uma pintura animalista em detrimento do lirismo naturalista com que iniciara a carreira.***

Silva Porto, O Amor na Aldeia, óleo sobre tela, 1887. Depósito da Câmara Municipal do Porto no Museu Nacional de Soares dos Reis.
A obra O Amor na Aldeia foi apresentada na Sétima Exposição do Grupo do Leão, em 1887. A tela cai no grupo das que foram severamente criticadas, sendo que o pintor Varela Aldemira (1895-1975) a considerou como um anúncio traiçoeiro da decadência de Silva Porto.
Aquando da apresentação do quadro, o poeta Silva Gaio (1860-1934) disse tratar-se de uma pintura feita a correr para não faltar no seu lugar de honra, artista negligente, imperfeito, incompleto, o interesseiro a dominar o idealista, e a prova está em que não tem sido apreciado…não se vê o drama nos seus assuntos. CIEBA 81
O Amor na Aldeia mostra-nos duas personagens em costume folclórico a representar uma cena de namoro. A figura feminina encontra-se ao lado direito e a masculina ao lado esquerdo, os dois voltados a três quartos para o observador; estão frente a frente e embora consigamos ver a face da mulher, o homem está de costas para nós. Ambas integram perfeitamente a paisagem na qual estão inseridas – nada é adereço, tudo se relaciona harmoniosamente e sentimos como se tivéssemos realmente interrompido este acontecimento ao invés deste parecer algo encenado.
De chapéu e com o casaco ao ombro, o homem apoia-se num cajado – sendo este o seu elemento mais próximo da mulher. Este homem enverga um fato escuro, uma camisa branca e um colete cuja frente é castanho e as costas beges.
A mulher apresenta-se com um lenço aos ombros e um avental coloridos sobre uma blusa branca e uma saia azul escura, respectivamente. Embora sem grande detalhe, conseguimos perceber os brincos e o colar de ouro, típicos da região Minhota que Silva Porto tanto pintou e que nos mostra aqui novamente. Com as mãos frente ao seu corpo, a mulher segura um lenço branco. É representada com olhar cabisbaixo, mostrando não querer dar muita confiança. Vemos, assim, uma referências às normas rurais deste tipo de relacionamentos que joga com um lado idílico (que pouco aparece na obra de Silva Porto) do que deve acontecer antes e depois do casamento – algo que também vemos comprovado pelo afastamento físico das duas personagens.
De um modo geral, os trajes representados mostram os vincos e as dobras da roupa, mas, de certa forma, são um pouco grosseiros com falta de detalhe, principalmente o da figura feminina – as riscas na parte inferior do avental mostram isso.
Silva Porto representou várias vezes os camponeses minhotos nas suas obras, personagens essas que surgem sempre enquadradas nos momentos captados. Aqui, longe do mundo do trabalho, vemos algo como uma novela etnográfica – uma história de amor que, mesmo assim, faz jus à proveniência dos intervenientes e à época em que é pintada.
É um momento de lazer em que as personagens, ao contrário da paisagem, se assumem como o tema principal da tela, mas nem por isso o pintor descura a representação do meio envolvente. As suas paisagens, quer sejam tema principal ou não, são sempre identificáveis.
Embora esta cena não represente trabalho rural, vemos uma menção a isso na cor escura da pele das personagens – o moreno simboliza o trabalho ao sol.

Silva Porto, O Amor na Aldeia (detalhe), óleo sobre tela, 1887. Depósito da Câmara Municipal do Porto no Museu Nacional de Soares dos Reis.

Silva Porto, O Amor na Aldeia (detalhe), óleo sobre tela, 1887. Depósito da Câmara Municipal do Porto no Museu Nacional de Soares dos Reis.

Silva Porto, O Amor na Aldeia (detalhe), óleo sobre tela, 1887. Depósito da Câmara Municipal do Porto no Museu Nacional de Soares dos Reis.
A obra de Silva Porto caracterizou-se por uma grande luminosidade e por uma paleta cromática bastante viva. No entanto, esta obra mostra uma luz um tanto ou quanto esbatida e as suas cores seguem o mesmo caminho, sendo que apenas os trajes das figuras, sobretudo da feminina, nos atiram com um pouco mais de vivacidade. A sua paleta mostra-se, como sempre, em gradações tonais das cores primárias.
As personagens pontuam o centro e o lado esquerdo da composição, sendo que esta acaba por ser a área mais habitada da obra, também devido à árvore que vemos quase no limite da tela e o restante arvoredo que se prolonga para além dela, criando uma mancha verde e acastanhada que corta o céu. Esse céu azul e limpo ocupa uma mancha muito comum na obra de Silva Porto e é visível do centro para o lado direito da tela. Este lado direito não tem elementos altos, havendo apenas uma árvore ainda pequena que é pouco mais alta que o muro e que não chega para interferir na leitura do céu, deixando-o respirar.
O chão é-nos apresentado em tons de areia, podendo efectivamente ser areia, pedra ou erva seca; é pontuado com alguma relva verde no lado direito da composição.
Tanto o chão como o céu foram pintados de forma bastante uniforme, sendo recortados pelas personagens, pelo arvoredo e pelo muro trabalhado em blocos de pedra cinzenta que marca o centro horizontal da obra bem como a sua largura.
Atrás do homem surge um elemento que outrora foi ele próprio a peça principal de uma obra de Silva Porto: o portão vermelho, o qual surge aqui com pouca vivacidade, passando quase despercebido.
Em toda esta parte de elementos da Natureza, conseguimos ver as pinceladas rápidas do artista, as quais conferem movimento e volume a toda a pintura.

Silva Porto, O Amor na Aldeia (detalhe), óleo sobre tela, 1887. Depósito da Câmara Municipal do Porto no Museu Nacional de Soares dos Reis.

Silva Porto, O Amor na Aldeia (detalhe), óleo sobre tela, 1887. Depósito da Câmara Municipal do Porto no Museu Nacional de Soares dos Reis.

Silva Porto, O Amor na Aldeia (detalhe), óleo sobre tela, 1887. Depósito da Câmara Municipal do Porto no Museu Nacional de Soares dos Reis.

Silva Porto, Cancela Vermelha, óleo sobre madeira, 1878-1879. Museu Nacional de Soares dos Reis. Fonte: GoogleArts&Culture.
Talvez por todas as questões assinaladas, este quadro está, normalmente, guardado nas reservas do Museu Nacional de Soares dos Reis. Esteve, recentemente, incluído na exposição Depositorium 3, a qual faz parte de um ciclo expositivo que o Museu portuense usa para mostrar ao público obras que raramente saem das suas reservas, permitindo que alguns dos seus “segredos” sejam desvendados.
O Amor na Aldeia é uma peça que ficou desde logo marcada como estando aquém de outros trabalhos de Silva Porto e por ser relativamente diferente daquilo a que o pintor foi habituando os seus admiradores. Mas talvez essa diferença devesse ser tida como algo mais positivo, porque, estando ou não relacionado com o factor económico, não deixa de ser de admirar que um artista consiga mostrar coisas diferentes quando é, ao mesmo tempo, “acusado” de representar sempre o mesmo. Não nos podemos esquecer que a sua pintura dedicada aos tipos e costumes regionais, que ocupou os seus últimos anos de produção, será, posteriormente, continuada pelas mãos de Carlos Reis (1863-1940) e de José Malhoa (1855-1933).
A obra de Silva Porto caracteriza-se pela preferência por pintar paisagens campesinas e episódios ou registos folclóricos, livres de dramas, nas quais a Natureza e o Homem coexistem em harmonia. O facto de ser considerado como o mestre do Naturalismo e um dos renovadores da pintura de paisagem em Portugal, tornou-o um alvo fácil para a crítica que esperou deste homem uma constante inovação, algo a que ele não correspondeu. Silva Porto queria, acima de tudo, pintar e ser pintor.
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Referências:
Aldemira, Varela, Silva Porto 1850-1893;
Cabral, José M. Peixoto; Ribeiro, Isabel; Cruz, António João, Características Técnicas da Pintura de Silva Porto;
França, José-Augusto, História da Arte em Portugal – O Pombalismo e o Romantismo, pp. 144-147Editorial Presença, 2004;***
Pacheco, Maria Emília Vaz, Silva Porto e a Expressão Ideológica da Pintura Naturalista em Portugal, 1986;
Pinto, Ana Lídia; Meireles, Fernanda; Cambotas, Manuela Cernadas, História da Arte Ocidental e Portuguesa, das Origens ao Final do Século XX, pp. 697-699, Porto Editora, 2006;*
ETC. e Tal – António Carvalho da Silva Porto;**
MatrizNet – O Amor na Aldeia;
MNAC – António Carvalho da Silva Porto.