Os Carnavais de Rafael Bordalo Pinheiro

Hoje, é dia de celebrar o Carnaval – altura do ano em que muitos aproveitam para brincar às princesas e aos super-heróis e que outros usam para se mostrar como realmente são. Outro marco grande deste dia festivo são os carros alegóricos que, na sua maioria, fazem alusões ao clima político, económico, social e até desportivo que se vive.

Estes festejos não são de agora e já no final do século XIX e início do século XX, Rafael Bordalo Pinheiro representava o Carnaval na sua obra seguindo estes “parâmetros” de análise ao que havia e via à sua volta, sendo desde logo um importante caricaturista da vida política portuguesa, não temendo as consequências que os seus desenhos pudessem trazer.
Não há, por isso, melhor forma de assinalar este dia tão colorido com alguns dos desenhos carnavalescos deste artista português presentes na colecção do Museu Bordalo Pinheiro. Há espaço para a representação do Carnaval em Portugal, especificamente de Lisboa e do Porto, mas também para o do nosso país-irmão, o Brasil, abordando o Carnaval do Rio de Janeiro.

Rafael Bordalo Pinheiro, Fevereiro – O Comercio do Porto Ilustrado [Cientifico], gravura, 1874. Fonte: MuseuBordaloPinheiro.

Rafael Bordalo Pinheiro, Carnaval de 1876 no Rio de Janeiro, litografia, 1876. Fonte: MuseuBordaloPinheiro.

O Carnaval era um tema caro ao nosso artista, de várias formas: como cena do quotidiano, objecto de reportagem gráfica nos jornais que publicou, para fazer sátira política, desenhar alegorias e decorações para os carros alegóricos dos clubes carnavalescos ou para os teatros da capital nos “bailes de terça-feira gorda”. E ainda abordou o Carnaval para se envolver na polémica causada pela imposição do Carnaval “Civilizado”, com ritos e propósitos distintos do Carnaval popular.

– Museu Bordalo Pinheiro.

E é exactamente um pouco disso tudo que podemos encontrar nestes trabalhos de Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905), os quais aparecem na sua obra a partir de 1870 e que se prolongam até praticamente ao fim da vida do artista. Com uma obra de tendência humorística, apanhando do vivo os seus temas e as suas personagens, por entre desenhos apenas a preto-e-branco e outros onde a cor aguarelada dá ainda mais vida às suas linhas, o artista movimentou-se sobre este tema tanto a pedido de personalidades do país, de associações carnavalescas, mas também inúmeras vezes nos vários jornais que assinava. Usava, inclusive, o tema fora da sua época, mostrando que a brincadeira por parte de quem governa acontecia durante o ano todo ao contrário do que era permitido ao povo fazer.

Muitas vezes, os desenhos de Bordalo Pinheiro são acompanhados de prosas humorísticas de vários autores da época como Ramalho Ortigão, Fialho de Almeida, João Chagas e Guilherme de Azevedo. À forte caricatura de Bordalo associam-se, assim, textos destes grandes cronistas do século XIX.

Rafael Bordalo Pinheiro, S. Euterpe Commercial (estudo para diploma da Sociedade Euterpe Comercial “Tenentes do Diabo”, clube ligado ao carnaval, no Porto), lápis de carvão e aguarela sobre papel, não datado. Fonte: MuseuBordaloPinheiro.

Rafael Bordalo Pinheiro, Expedição ao Porto (Apontamentos da Nossa Campanha), litografia, 1904. Fonte: MuseuBordaloPinheiro.

Rafael Bordalo Pinheiro, A Perpétua Mascarada Politica, Antes e Depois do Carnaval, litografia, 1880. Fonte: MuseuBordaloPinheiro.

Bordalo Pinheiro trata o Carnaval não só como um momento de diversão, mas também como uma oportunidade de, através dele, fazer uma análise social, política e económica.
Retrata uma celebração importante que, na sua altura, tinha uma força muito mais marcada na capital, algo que se perdeu devido à vontade das autoridades de civilizar o Carnaval, algo que o artista nos mostrou em A Última Máscara. Bordalo era contra essa progressiva descaracterização do Carnaval lisboeta, pois considerava que essa lavagem do Carnaval popular mataria esta celebração. Na sua obra, vemos um fim que sabemos agora ter-se concretizado: no século XIX, o Carnaval era a principal festa pública que acontecia na capital, algo que já não se verifica nos dias de hoje. No entanto, é de notar que, embora com uma importância bastante mais diminuta do que então, actualmente sabemos que o dito Carnaval popular continua a manifestar-se, algo que não acontece com o Carnaval civilizado que se queria implementado e do qual cujas celebrações tradicionais fazem agora apenas parte dos livros e das fotografias de então.

Podemos destacar duas personagens que aparecem mais do que uma vez nestes trabalhos referentes ao Carnaval, seja como personagem principal do desenho ou como composto de uma composição em grupo: o Zé Povinho, o qual aparecia na sua fatiota normal ou, por vezes, encarnando personagens carnavalescas; e ainda o Cheché, figura principal das Paródias de Carnaval até cerca de 1910 e que era uma caricatura da Lisboa miguelista e de como se vestiam os homens importantes: cabeleira de estopa, grandes lorgnons, um facalhão de madeira empunhado, casaco às cores, punhos de renda e um enorme chapéu bicorne que normalmente continha uma inscrição obscena.

Rafael Bordalo Pinheiro, A Última Máscara, litografia colorida, 1901. Fonte: MuseuBordaloPinheiro.

Rafael Bordalo Pinheiro, No Entrudo, litografia, 1886. Fonte: MuseuBordaloPinheiro.

Esquerda: Rafael Bordalo Pinheiro, Diário de Notícias Ilustrado, litografia colorida, 1899. Fonte: MuseuBordaloPinheiro.
Direita: Rafael Bordalo Pinheiro, Cheché, gravura, não datado. Fonte: MuseuBordaloPinheiro.

Rafael Bordalo Pinheiro parte para o Rio de Janeiro em Agosto de 1875, regressando de vez a Portugal apenas em Março de 1879. Durante este período usufruiu de tudo o que podia e, tal como podem comprovar pela transcrição que se segue, o Carnaval carioca não foi excepção. Dele tirou a euforia mais marcada do que o que acontecia então no Carnaval português, mas nunca pôs de parte a paródia a personagens com cargos superiores.

Pleno carnaval, aquele carnaval brasileiro, sumptuoso, trasbordante, vivo, mais intenso do que o oficializado carnaval de Nice. Na pedra do jornal, como toda a imprensa da época instalado na Rua do Ouvidor, e cuja administração ficava ao rés da rua, Bordalo desenhou a caricatura do Comissário da Polícia que enormes colarinhos caracterizavam.
Sucesso da gargalhada, multidão aglomerada diante da pedra, trânsito interrompido.
O Comissário da Polícia acode, a saber o que provoca tal aglomeração. Dá com a própria caricatura e manda dizer por um guarda que safem aquilo. Bordalo suprime a figura, mas deixa ficar os colarinhos.
Maior êxito, gargalhadas retumbantes.
O Comissário da Polícia torna a passar e ordena, enfurecido, que apaguem o resto.
Bordalo cumpre. Apaga os colarinhos, mas escreve na pedra esta simples e inocente legenda:
— «Foram para a lavadeira».

-Leitão, Joaquim, “O Poço que ri: Conferência sobre Rafael Bordalo Pinheiro e o seu tempo”, 1936.

A obra Carnaval de 1897 é um desenho humorístico exactamente dedicado a essa festa brasileira. Vemos uma garrafa de champanhe (que aqui representa a revista Mala da Europa: Revista Quinzenal para o qual traçou esta aguarela) de onde saem figuras dos carnavais franceses e italianos num gesto de reconhecimento do valor do Carnaval carioca, mostrando que não são os únicos a celebrá-lo com grande importância. Não falta, claro, as sátiras à vida política e social do Brasil, as quais estão rodeadas da folia típica do Carnaval, dança, serpentinas e confettis. Há ainda espaço para uma alusão a Portugal num painel de azulejos que mostra o Entrudo português que os brasileiros herdaram, mas do qual se afastaram. Vemos os antecessores do que é agora a grande festa do Carnaval carioca, sem deixar de lado figuras típicas da obra de Bordalo Pinheiro, como é o caso do já mencionado Zé Povinho. A cena desenvolve-se no cume do Pão de Açúcar, ladeado pela Baía de Guanabara.
É uma peça carregada de cor, sendo os pontos mais chamativos o azul do céu e os tons mais escuros do monte e da garrafa de champanhe; escuridão essa que contraste com os pontos coloridos das fitas, dos confettis e das fatiotas de algumas das personagens que povoam o desenho. As serpentinas criam uma espécie de moldura de toda a cena que Bordalo Pinheiro nos apresenta.

Rafael Bordalo Pinheiro, Carnaval de 1897, aguarela e tinta-da-China sobre papel, 1897. Fonte: MuseuBordaloPinheiro.

Do lado da representação do Carnaval português temos, por exemplo, a obra Carro Allegorico para o Carnaval, onde vemos, como o nome indica, um carro alegórico puxado por vários Zé Povinhos que são chicoteados pelo cocheiro, aqui encarnado pelo juiz Veiga. Como é de prever, este carro carnavalesco representa o Estado e o seu orçamento carregados numa mesa sobre a qual vemos duas senhoras semi-nuas em solenes festejos – simbolizam, claro está, a dívida do país e a política dos negócios. Uma sátira sobre o dinheiro que o Estado gasta e que significa uma sobrecarga de trabalho e aperto de impostos para o povo. Uma ilustração que remete exactamente para a altura em que foi criada, não só pela inclusão de personagens políticas da época, mas também por uma alusão ao défice através de um Pierrot e ainda por abordar a polémica congreganista (presente na Hidra que devora uma eclesiástico), um tema em voga naquela altura. Os Zé Povinhos carregam a vontade gananciosa de comer dos outros ao mesmo tempo que suportam a fome deles próprios.
Ao contrário do que acontece com todo o colorido da obra referida acima, este trabalho sobre o Entrudo português resume a tons de preto, vermelho e algum cinzento.

(…) o Carro do Estado, no projecto alegórico que Rafael Bordalo Pinheiro desenhou para o Carnaval de 903, puxado por Zés Povinhos que o juiz Veiga chicoteia, e rodando com duas ornamentadas cabeças de Zé Luciano e de Hintze, é uma enorme mesa do Orçamento, bem servida, sobre a qual um Pierrot de nariz postiço (o “Deficit”) sopra uma corneta, e duas damas despeitadas e em calças íntimas, a Política de Negócios e a Dívida, erguem taças de champanhe ou alçam a perna.

-José-Augusto França*.

Rafael Bordalo Pinheiro, Carro Allegorico para o Carnaval, litografia colorida, 1903. Fonte: MuseuBordaloPinheiro.

Rafael Bordalo Pinheiro, à direita, mascarado de mulher. Fonte: FacebookMuseuBordaloPinheiro.

Com estas obras de Rafael Bordalo Pinheiro vemos como a forma de usar o Carnaval para dar ênfase a problemas nacionais e internacionais é algo que acontece há, pelos menos, mais de 100 anos. Embora alguns dos carnavais portugueses, como o lisboeta, tenham perdido a vida e o impacto que tinham na época do artista, a sua história e influência prolonga-se nos restantes que ainda hoje, todos os anos, marcam as manchetes dos jornais e que ocupam as ruas de várias cidades um pouco por todo o país. Não é por as pessoas terem direito a este momento de pausa e de diversão que não se preocupam com os problemas que ocupam a sua vida, o seu país e outros, e mesmo felizes e carregados de cores e de brilhos fazem questão de utilizar a folia do Carnaval para mostrar o que vai de mal no mundo. Há mais de um século que assim é e, enquanto for necessário, continuará a ser.

À sátira política típica dos desenhos de Bordalo Pinheiro associa-se a sua obsessão pela minúcia que, deste modo, nos garantem uma reprodução fiel do que se passava no mundo português e brasileiro e que nos servem como testemunho da sua época, tendo, aqui, um tom mais vivo pela sua inserção no mundo do Carnaval.

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Referências:
França, José-Augusto, História da Arte em Portugal – O Pombalismo e o Romantismo, Editorial Presença, 2004;*
Centro de Artes e Criatividade de Torres Vedras – A mascarada política, O Carnaval na Obra de Rafael Bordalo Pinheiro (1870-1905);
Museu Bordalo Pinheiro – A obra de Bordalo sob o olhar de José-Augusto França;
Museu Bordalo Pinheiro – Brasil de Bordalo;
Lisboa de Antigamente – Carnaval de Lisboa: o “Cheché”;
TSF – Álvaro Costa de Matos, investigador da História do Jornalismo: os carnavais de Bordalo em Torres Vedras.

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