Hoje, 24 de Fevereiro de 2023, marca o segundo aniversário do primeiro artigo do proximArte. Para celebrar esta data, decidi trazer um tipo de publicação diferente, que foi sugerido por uma leitora e que se tornará algo comum de verem publicado por aqui: associar obras-de-arte a músicas de um álbum.
Para começar, decidi escolher um dos meus álbuns favoritos: If You Leave, da banda inglesa Daughter, o qual foi lançado em Março de 2013, portanto está perto de completar uma década de existência.
Antes de iniciar, quero dizer que as minhas interpretações das músicas podem ser diferentes das vossas e, por isso, é normal que não se identifiquem com uma ou outra obra que seleccionei. Para todas será dada uma justificação do porquê achar que tal obra encaixa bem com a música.

Daughter, If You Leave, 2013. Fonte: Spotify.
1. Winter
Edvard Munch, Separação, 1896.

Edvard Munch, Separação, óleo sobre tela, 1896, Museu de Oslo. Fonte: GoogleArts&Culture.
And we were in flames, I needed, I needed you
To run through my veins, like disease, disease
And now we are strange, strangers
Para uma música que remete para o fim de uma relação, deixando ainda no ar um pouco do que ela foi, não faltariam obras possíveis de associar. Edvard Munch (1863-1944) foi, sem dúvida, um dos artistas que mais pintou os desamores, baseando-se na sua própria vida. Em Separação vemos uma mulher que olha o mar com os cabelos ao vento, os quais tocam no homem que está de frente para nós no lado esquerdo da composição. Este toque permite-nos fazer a segunda ligação à música, numa referência aos tais versos que nos contam como era a relação antes de tudo se desmoronar. O homem veste preto, a cor da tristeza, e a sua mão está colocada sobre o coração e está vermelha mostrando-nos que o órgão sangra devido à separação. Frente a este homem está uma flor vermelha que se assemelha a um coração – uma referência à ideia de Munch de que toda a sua Arte é nutrida pela sua vida e pelo seu sangue. Munch apresenta-nos uma pintura com texturas variadas, onde há luz e escuridão e na qual há elementos brilhantes e outros opacos, mas onde tudo culmina no amor que se desfez recentemente.
2. Smother
Ana Leonor Rocha, Desolação 2, não datado.

Ana Leonor Rocha, Desolação 2, acrílico sobre tela, não datado. Fonte: SaatchiArt.
Oh love
I’m sorry if I smothered you
I’m sorry if I smothered you
Sometimes I wish I’d stayed inside
My mother
Never to come out
A segunda música do álbum, Smother, leva-nos a conhecer alguém que passou recentemente por uma separação que a deixou tão devastada que o sentimento que prevalece é “quem me dera nunca ter nascido”. Aqui encaixo Desolação 2, de Ana Leonor Rocha (n.1970), pois mostra-nos um corpo nu e frágil que se recolher quase em posição fetal, criando aqui a ideia de voltar para o ventre da mãe. É uma obra simples onde prevalecem o cinzento e o azul, com linhas também simplificadas que, no entanto, são suficientes para contar tudo o necessário. Em algumas zonas, vemos tinta que escorre e que, embora possa não ser um elemento propositado, nos indica um corpo que se desfaz devido a toda a dor que carrega.
3 .Youth
Pierre-Auguste Renoir, O Almoço dos Barqueiros, 1880-1881.

Pierre-Auguste Renoir, O Almoço dos Barqueiros, óleo sobre tela, 1880-1881. The Phillips Collection. Fonte: GoogleArts&Culture.
And if you’re still breathing, you’re the lucky ones
‘Cause most of us are heaving through corrupted lungs
Youth é uma música que nos remete para alguém que viu a sua vida destruída e que se sente morta por dentro. Desta forma, quem nos canta passa uma mensagem a quem ainda tem motivos para sorrir e que ainda respira – eles são os sortudos. Para esta associação, optei por pegar no lado mais feliz da canção e por isso trago-vos O Almoço dos Barqueiros, de Pierre-Auguste Renoir (1841-1919). Nesta pintura vemos um grupo constituído por mulheres e homens jovens, os quais se juntam para desfrutar a vida alheios a tudo o que está à sua volta – o que indica que não perceberiam o sofrimento pelo qual passa a narradora de Youth. Nesta obra, Renoir imortaliza os seus amigos (quase todas as figuras são identificáveis) e trabalha em três vertentes: o retrato, a natureza-morta e a paisagem. É uma obra leve não só pelo momento que vemos capturado, mas também pelas cores utilizadas e por toda a luz que nos transmite. Há ainda uma quantidade infinita de texturas que se adequam exactamente ao elemento que compõem.
4. Still
Edward Hopper, Verão na Cidade, 1950; Excursão na Filosofia, 1959.

Esquerda: Edward Hopper, Excursão na Filosofia, óleo sobre tela, 1959. Colecção privada.
Direita: Edward Hopper, Verão na Cidade, óleo sobre tela, 1950. Colecção privada.
Fonte: TimHaslett.
Two feet standing on a principle
Two hands digging in each others wounds
Cold smoke seeping out of colder throats
Darkness falling, leaves nowhere to move
Num álbum que remete tanto para a solidão – e vamos apenas na quarta música – faz todo o sentido incluir o artista que capturou exactamente a solidão da sociedade americana no seu tempo: Edward Hopper (1882-1967). Still é uma canção que nos fala sobre um casal que se mantém junto e que ainda se procura, mas apenas numa tentativa de fazer com que tudo resulte, embora ambos já tenham percebido que não há mais o que fazer ali. Nestas duas obras de Hopper vemos exactamente isso: um deles dorme e o outro continua a seu lado, mas percebemos que é uma questão de estar apenas por estar. Estão juntos, mas ao mesmo tempo já é visível a solidão e o quase desespero de quem sabe que aquele já não é o seu lugar. Tanto numa obra como noutra, Hopper optou por cores sólidas e por criar um jogo interessante com a luz que entra pela janela: em Verão na Cidade a mulher mergulha os dois pés na luz que está no chão, enquanto que em Excursão na Filosofia o homem apenas avança a ponta do pé esquerdo, como se estivesse a testar a água.
5. Lifeforms
Paula Rego, Sem Título – Os Pastéis do Aborto, 1998.

Paula Rego, Untitled – Os Pastéis do Aborto, pastel sobre tela, 1998. Fonte: Facebook.
Well you can try to sink down deeply
Find the children lost at sea
Find the children who discretely
Were killed in infancy
To stop them holding you and screaming
That you lose your wildest dreaming
Still reminding you of him
How he left without reasons
Lifeforms fala-nos da dor que provém de uma gravidez não planeada e do seu consequente aborto, do qual resulta um sentimento de abandono. Se há artista que retratou este sentimento foi, claro está, Paula Rego (1935-2022). A pintora portuguesa foi uma convicta defensora dos direitos das mulheres e a questão do aborto foi um dos temas que mais abordou – a própria teve que recorrer a abortos clandestinos, por isso era também uma questão pessoal. Esta tela Sem Título, de 1998, mostra-nos exactamente essa sensação de abandono e solidão, neste caso porque a mulher retratadas teve que arranjar uma solução sozinha, mas a sua expressão permite-nos também fazer a ponte para o vazio que fica depois e que é referido na música. É uma obra de tons escuros que apenas são quebrados pela nudez da mulher e pela força do pano cor-de-laranja que está por debaixo dela. Tudo acontece precisamente numa sala vazia onde existe apenas o necessário para a realização do procedimento, o que nos permite constatar as poucas condições a que as mulheres se sujeitavam e continuam a sujeitar para conseguirem realizar um aborto. Uma obra crua que se encaixa com a crueza da música a que a associamos aqui.
6. Tomorrow
Edward Hopper, Sol da Manhã, 1952.

Edward Hopper, Sol da Manhã, óleo sobre tela, 1952. Columbos Museum of Art. Fonte: WikiArt.
But don’t bring tomorrow
Cause I already know
I’ll lose you
Tomorrow é a continuação de Lifeforms e fala-nos de um amanhã no qual a protagonista já sabe aquilo que não vai ter – o bebé que abortou. Pede, por isso, para que não venham mais dias, pois não quer lidar, mais uma vez, com essa solidão. Tal como já mencionado neste artigo, Edward Hopper soube registar perfeitamente esse sentimento de vazio. Em Sol da Manhã vemos uma divisão composta apenas por uma cama na qual está sentada uma mulher com uma fina camisa de dormir. Esta figura olha pela janela que tem à sua frente e o seu olha vazio indica-nos um assombro pelo dia que acaba de começar, pois saber que tudo o que vai sentir é igual ao que sentiu no dia anterior. Mais uma vez, Hopper aposta em cores sólidas e recorre novamente ao jogo de luz que provém da janela e que permite iluminar a face da mulher, as suas mãos cruzadas sobre as pernas, os pés e a também a coxa da perna direita.
7. Human
Frida Kahlo, O Veado Ferido, 1946.

Frida Kahlo, O Veado Ferido, óleo sobre tela, 1946. Colecção Privada. Fonte: FridaKahlo.
Underneath this skin there’s a human
Buried deep within there’s a human
And despite everything I’m still human, mmm
But I think I’m dying here
Em 1946, Frida Kahlo (1907-1954) submeteu-se a uma operação à coluna para tentar aliviar as dores que sentia, algo que não aconteceu. Assim, a artista representa-se em O Veado Ferido como forma de demonstrar a sua dor física, a depressão emocional e o facto de não conseguir alterar o seu próprio destino. Em Human, os Daughter fazem várias referências ao mundo animal, ao sentirmo-nos presos e indefesos, mas ainda assim o refrão é um constante relembrar de que por baixo da pele há um humano. Acaba por ser uma letra um pouco mais positiva, no entanto lança algumas vezes o verso “but I think I’m dying here” e sabemos que todo o lado sombrio e triste do álbum está ainda presente. Esta dualidade de humano e animal encaixa perfeitamente no veado com a cabeça de Frida Kahlo; e o lado do sofrimento é sem dúvida, possível de remeter para as flechas que ferem este corpo.
8. Touch
Sir Lawrence Alma-Tadema, Súplica, 1876.

Sir Lawrence Alma-Tadema, Súplica, óleo sobre tela, 1876. Guildhall Art Gallery. Fonte: WikiArt.
Give me touch
Cause I’ve been missing it
I’m dreaming of
Strangers
Kissing me in the night
Just so I
Just so I
Can feel something
Can feel something
Can feel something
Can feel something
Touch é a oitava música do álbum e fala-nos de alguém que se sente impotente e, mais uma vez, vazio enquanto suplica para que a pessoa que ama lhe retribua o afecto e a faça sentir algo mais. Esta Súplica de Sir Lawrence Alma-Tadema (1836-1912) não se apresenta com uma conotação tão triste quanto a da música a que a associamos, mas ainda assim contém esse lado de querer ter algo em troca. Nesta pintura vemos um homem deitado num banco de pedra e que olha fixamente para a mulher à espera de uma resposta. Esta figura feminina já recebeu flores (que podemos ver no seu colo) e olha de soslaio para o homem que a interpela – um olhar que não revela qual será a sua decisão. O artista presenteia-nos com uma obra repleta de texturas e onde o branco e os azuis governam a paleta cromática. Uma pintura de estilo Romântico que nos leva até à Roma Antiga.
9. Amsterdam
Ryan McGinely, Fogo de Artificio, 2002.

Ryan McGinely, Fireworks, fotografia, 2002. Fonte: ThePhotoPhore.
I used to dream of
Adventure
When I was younger
With lungs miniature
But now we’re killing
Our brain cells
Is this called living
Or something else
Or something else
(Tell me to come back, tell me to come back)
Or something else
A música Amsterdam remete-nos para a vontade de escapar. Tendo em conta a letra e o local a ela associado, é fácil assumir que este escapismo acontece através do consumo de drogas.
Ryan McGinely (n. 1977) publicou, em 2017, o livro The Kids Were Alright, o qual contém fotografias que, entre 1998 e 2003, tirou aos seus amigos, amantes e a ele próprio. São fotografias de festas repletas de loucura e, claro está, de drogas. Vemos o antes, o durante e o depois destes e de outros momentos, mas vemos, acima de tudo, miúdos numa vivência diferente do seu dia-a-dia e que têm uma enorme vontade de aproveitar a vida de qualquer forma possível. Esta Fogo de Artificio é um desses exemplos e mostra-nos alguém que se sente confortável na sua nudez (algo também referido na música) e que se lança na aventura da noite para de manhã voltar à rotina e aos seus pensamentos.
10. Shallows
John Everett Millais, Ofélia, 1851-1852.

John Everett Millais, Ofélia, óleo sobre tela, 1851-1852. Tate Britain. Fonte: Tate.
Let the water rise
Let the ground crack
Let me fall inside
Lying on my back
Lying on my back
(…)
If you leave
When I go
Find me
In the shallows
If you leave
When I go
Find me
In the shallows
Sobre Shallows a própria vocalista da banda, Elena Tonra, disse tratar-se de uma música sobre morrer, o medo de morrer e o medo de não saber o que acontece depois; a vontade de que nos encontrem quando morremos, para que não estejamos sozinhos. A letra leva-nos para um local com água onde o corpo poderá ser encontrado à superfície. Não há obra que represente melhor esta descrição do que Ofélia, de John Everett Millais (1829-1896). Ofélia é uma das personagens de Hamlet, de William Shakespeare, uma jovem que se suicida num lago. Nesta obra de Millais vêmo-la ainda de olhos abertos e com os braços para cima, mas reparamos como o último sopro de vida lhe sai já da boca. Uma pintura forte nos tons verdes e castanhos, deixando que o foco principal seja o pálido da pele de Ofélia.
11. Smoke
Juliana Matsumura, Corpo-Fumo, não datado.

Juliana Matsumura, Corpo-Fumo, monotipo sobre papel, não datado. Fonte: JulianaMatsumura.
Smoke é um B-Side para a música Youth e embora não faça oficialmente parte do álbum vou incluí-la na mesma. Este tema leva-nos por descrições de coisas que não são visíveis ou que não são perceptíveis, coisas que estão desfocadas e coisas que se desfazem. Há sempre a presença de uma quarto cheio de fumo do qual quem nos conta a história não sai. Podemos dizer que este fumo chega mesmo a confundir-se com as pessoas e daí a associação à obra Corpo-Fumo de Juliana Matsumura (n.1993), na qual as duas coisas se tornam uma só. Uma obra de tonalidades e sobreposições que resultam de intersecções criadas pelo encontro de dualidades que aqui vemos na mancha e na linha. Há um lado espiritual que faz uma ponte entre a luz e a escuridão e no facto de não conseguirmos perceber onde começa e termina a forma que nos é apresentada.
Este tipo de exercício de associação entre músicas e obras-de-arte permite mergulhar ainda mais fundo nos possíveis significados destas canções, mas também conhecer mais peças artísticas numa tentativa do foco não cair apenas sobre obras amplamente divulgadas e estudadas.
If You Leave é, como ficou demonstrado pelas descrições, excertos de letras e por algumas das obras escolhidas, um álbum sombrio e de muito vazio e solidão. Serve, no entanto, como um abraço para aqueles que se conseguem identificar com algumas das músicas e assim perceberem que não estão sozinhos.